RESUMO
Estudo sobre trabalhos artísticos que atuam em prol da informação,
da inclusão e de estéticas diferenciadas no Rio de Janeiro e
em cidades próximas, este artigo tem como objetivo apresentar
e discutir iniciativas que empregam o teatro e a dança como
meios de comunicação, como veículos de informações com
potencial para promover a cidadania e a inclusão social pelo
contato com a arte. Em termos metodológicos, parte do estudo
de três grupos – Companhia Étnica de Dança e Teatro, Teatro
Novo e Periferia em Ação. Como método de pesquisa, utiliza a
observação e a realização de entrevistas qualitativas semi-estruturadas.
Constata que nos três grupos estudados comunicação
e educação são preocupações para com o público assim como
para os participantes dos grupos, seus familiares e próximos.
Conclui que o teatro, em sua tarefa comunicadora, formadora,
transgressora se mostra um importante meio para criticar a sociedade
e propor, de forma alternativa, uma revisão de atitudes
e olhares sobre o mundo.
PALAVRAS-CHAVE: Comunicação. Corpo. Teatro. Dança. Educação.
Cidadania.
Arte, política, palco e comunicação são noções que no Ocidente se cruzam. O estudo da história do espetáculo aponta que em diversos momentos teatro e dança foram empregados pelo Estado ou pela Igreja como veículo para suas mensagens e propagandas [1]. A arte, no entanto, especialmente no início do século XX, momento em que eclodiram as vanguardas européias, mostrou posicionamento crítico frente a guerras e ao próprio universo artístico e suas regras[2].
Se considerarmos a política em cada ato da vida cotidiana e se consideramos a arte parte desse cotidiano, entenderemos que a dança e o teatro também podem ser formas de manifestação política e meios de comunicação. A questão que se levanta é que no universo da arte contemporânea há espaço para diversas intenções artísticas e o artista não precisa fazer resistência, “levantar bandeiras” ou transmitir mensagens – mas pode fazê-lo. Se o faz, o faz com que objetivo, intenção e, principalmente, por quê? Efetivamente, há grupos de teatro e dança que adotam essa postura; há teatrólogos como Augusto Boal que buscam “conquistar identidade e cidadania” (BOAL, 2003, p.156), contudo, apenas se considerarão cidadãos ao ser “[...] capazes de intervir na sociedade e transformá-la naquela que desejamos” (BOAL, 2003, p. 156).
Três exemplos de trabalhos artísticos contemporâneos que têm interesse (HABERMAS, 1982) na informação, na inclusão e na abertura a outras estéticas têm lugar no Rio de Janeiro e em cidades próximas. A Companhia Étnica de Dança e Teatro pensa profissionalmente a dança e suas possibilidades políticas, estéticas e de inclusão social de jovens negros. Iniciativas amadoras e fora do circuito comercial, os grupos Teatro Novo, composto principalmente por jovens com Síndrome de Down, e Periferia em Ação, integrado por jovens de comunidades de baixa renda, são exemplos do tipo de trabalho que considera possibilidades comunicativas e educativas, além das estéticas, ao construir um espetáculo.
Partindo do estudo desses três grupos, este artigo tem como objetivo apresentar e discutir iniciativas que empregam o teatro e a dança como veículos de informações que visam incentivar a busca pela cidadania e a inclusão social pelo contato com a arte. Os três grupos são distintos e têm propostas diversas, mas em comum têm a possibilidade de recorrer ao teatro ou à dança como meio de comunicação de valores, idéias e visões de mundo de grupos pouco privilegiados socialmente. E utilizam esses meios de comunicação como forma de promover discussão sobre cidadania.
A Companhia Étnica foi estudada por seu percurso consistente e coerente com uma proposta estética e política com dança contemporânea na cidade do Rio de Janeiro. Os dois grupos de teatro estudados foram escolhidos por não pertencerem ao centro metropolitano, mas por serem próximos a ele, e por suas especificidades. O Grupo Teatro Novo, de Niterói, por seu trabalho com pessoas com deficiências, buscando informar e incluir socialmente por meio do teatro e contando com apoio da Prefeitura da cidade. O Grupo Periferia em Ação, de São Gonçalo, por sua origem de movimento social, com trabalho em periferias e comunidades carentes empregando como metodologia o Teatro do Oprimido que, além de informar, instiga os espectadores a tomarem suas decisões e ações a fim de mudar a realidade proposta.
Como método de pesquisa, recorremos à observação, à realização de entrevistas qualitativas semi-estruturadas (MINAYO, 1994) e à discussão sobre o material coletado a partir do referencial teórico adotado. A observação se deu em espetáculos e ensaios. Da Companhia Étnica foi entrevistada a coreógrafa e diretora Carmen Luz. Os grupos Teatro Novo e Periferia em Ação foram assistidos em atuação, respectivamente, nos espetáculos O Trânsito (2006) e A Descoberta de Trancinha (2006). Do primeiro, foi entrevistado o diretor Rubens Gripp e do segundo, três atrizes.
Muitas vezes lembrado como forma de entretenimento e veículo de informação voltado apenas para quem pode pagar pelo ingresso, o teatro também pode ser pensado como um meio popular e de fácil acesso, pois tem a possibilidade de acontecer em locais outros que o espaço cênico convencional e adaptarse a condições oferecidas por espaços populares. Nesse sentido, enquadra-se na tendência que “‘retrata’ ou ‘serve de veículo’ para exprimir as condições de vida da população marginalizada, não somente vivendo nas ruas, mas também nas áreas consideradas periféricas aos grandes centros urbanos” (SANTAELLA, 2005, p. 118).
Não são todas as peças nem todas as montagens que podem ser adaptadas a tais condições, mas, para o teatro de intenções formadoras e sociais, a proximidade com o público e seu envolvimento revela-se mais importante. Assim, cenários, figurinos, objetos cênicos que podem apresentar melhor a realidade discutida vão depender do orçamento disponível. Palco e cenários são coadjuvantes, atores e atrizes que atuam em cena muitas vezes são da própria comunidade que recebe o espetáculo.
Nesse tipo de espetáculo, o processo de construção e a participação da comunidade se mostram mais importantes do que o resultado – a apresentação de uma peça teatral ou de dança. A inserção de atuantes – atores ou dançarinos – da comunidade desperta interesse dos grupos sociais locais, gera identificação e aproxima das atividades propostas na medida em que há participação no processo. Para moradores-atuantes, assim como deficientes-atuantes e seus familiares, a participação artística proporciona reconhecimento no grupo social, aumenta a auto-estima, projeta novas visões de mundo, da realidade e de perspectivas para o futuro. Ao mesmo tempo, pode mudar as perspectivas de familiares e vizinhos, ampliando e multiplicando a circulação de informações.
A relação do teatro com formação que se explicita nos grupos contemporâneos estudados segue uma longa tradição no Ocidente. Desde a Grécia Clássica, por volta do século V a.C., quando a tragédia “alcançou seu esplendor” (BORNHEIM, 1992, p.69), essa relação se constrói. Em sua Poética, obra na qual analisa a tragédia grega, o filósofo (Aristóteles aponta para aspectos que podem ser entendidos sob uma perspectiva formadora ou educativa:
A imitação a que se referiu Aristóteles no trecho anterior não deveria ser exatamente como o original a que se reportasse: ao artista caberia melhorá-lo – o que poderia ser entendido ou interpretado como uma tarefa pedagógica na medida em que exaltaria valores considerados “positivos”.
A Poética influenciou toda uma vertente do teatro até a contemporaneidade. Nessa vertente, além da imitação, outro aspecto se faz até hoje muito importante: a catarse. A explosão emocional, purgação do espectador junto com o personagem teria função moral, harmonizadora: ao sofrer junto com o herói, o público também comemoraria com ele a vitória final, o alívio pelo dever cumprido. Tal pensamento pode ser tomado como formador, educador.
No universo da arte contemporânea, onde diversas vertentes coexistem, há trabalhos que buscam linhas informativas/conscientizadoras, poder-se-ia chamar até de pedagógicas; contudo, há obras que não precisam veicular mensagens, engajar-se em movimentos ou causas. O artista se expressa e não necessariamente pretende “comunicar-se” – embora do ponto de vista dos estudos de comunicação saiba-se que sempre estará comunicando alguma coisa.
No tipo de espetáculo que aqui se acompanha, no entanto, a transmissão de informações, a participação na construção do trabalho, o engajamento são intencionais e fundamentais. E quem participa do espetáculo se informa, se transforma e forma os que estão a sua volta. Nesse sentido, os participantes dos grupos de teatro são mediadores culturais – como conceitua Barbero (1997) – atuam criticamente em relação à informação que “filtram” culturalmente e depois retransmitem.
Pensar nas possibilidades comunicadoras da arte, assim como em suas possibilidades políticas e sociais se constitui em uma importante forma de entender a arte e seus frutos não somente como “produtos” estéticos. Comunicação e arte são espaços que na pós-modernidade convergem. Como refletiu Santaella:
Em outra perspectiva, pensar nas possibilidades da relação comunicação/educação/arte leva a entender essa última em uma visão mais ampla, política, educadora, crítica, filosófica. Constitui-se em um modo de entendê-la como interessada – não comercial ou economicamente, mas em termos de emancipação. Aqui poder-se-ia recorrer à noção de interesse como tratada por Jürgen Habermas (1982). O filósofo reflete acerca do interesse baseado na ação comunicativa da relação dos homens entre si, com objetivo de alcançar o entendimento. Conclui que todo conhecimento se constrói a partir de interesses que o orientam. Retomando o objeto de pesquisa aqui observado, pode-se pensar que a informação que os grupos de teatro e dança fazem circular, busca promover conhecimento, gerar discussões movidas por legítimos interesses emancipatórios.
Cidadania tem assumido diferentes formas desde a Roma Antiga até as modernas repúblicas ocidentais, a partir do século XVIII, mas tornou-se reconhecida a idéia de que seria composta de direitos civis, políticos e sociais[3] (VIEIRA, 1997, p.22). A idéia de cidadania continua em construção e o sociólogo Liszt Vieira apresenta formas mais recentes: “[...] direitos que têm como titular não o indivíduo, mas grupos humanos como povo, nação, coletividades étnicas ou a própria humanidade” e ainda direitos “[...] relativos à bioética, para impedir a destruição da vida e regular a criação de novas formas de vida em laboratório” (1997, p.23).
Cidadania é conceito, então, relacionado a direitos, conquistas, engajamento e participação. É nesse sentido de engajamento que o teatrólogo Augusto Boal escreve que ao fazer arte, inventa a sociedade que quer, aquela composta de “cidadãos solidários” (BOAL, 2003, p.156). Seu olhar é importante para se pensar a arte também como possibilidade para despertar o interesse para a questão dos direitos sociais, políticos, civis. Os três exemplos estudados a seguir apontam para um uso do teatro e da dança com potencial para despertar em públicos e atuantes o interesse pela cidadania. Diz-se potencial porque o fato de informar aos sujeitos não garante que a cidadania se efetive. Contudo, a veiculação de informações em uma linguagem mais próxima de seu público e com atores (sociais) oriundos do próprio universo tratado no espetáculo parece gerar mais empatia, credibilidade e operar melhor do que informações veiculadas por meios de massa.
Fundada no Andaraí, bairro da região da Grande Tijuca[4], em 1994, a Companhia Étnica de Dança e Teatro surgiu da iniciativa da coreógrafa Carmen Luz. A companhia faz parte de um projeto de educar esteticamente, formar criticamente cidadãos jovens, conscientes politicamente de seu papel na sociedade e desenvolve atividades com jovens e crianças principalmente das comunidades do Complexo do Morro do Andaraí e da Grande Tijuca . A dança e o corpo são os meios que viabilizam o projeto de mostrar aos jovens e crianças que há outros caminhos que aquele da marginalidade social.
Embora seu projeto artístico apresente certo aspecto “social”, na medida em que assume um papel formador/educador, Carmen Luz explicou que seu esforço se situa em outra esfera: “Não sou assistente social, não tenho essa formação. Então, não faço trabalho social. Gosto de dizer que faço uma intervenção estético-cultural na favela” (LUZ, 2005)[5] . Essa fala explicita o objetivo de desenvolver uma linguagem própria, buscar a criação estética. O trabalho com dança e a companhia surgiu, de acordo com a coreógrafa:
Trabalhando “[...] com os corpos e os pensamentos de jovens cujos únicos bens que possuem são suas próprias vidas vivas”(LUZ, 2005)[7] , a coreógrafa explicitou duas preocupações: estética e social. As dificuldades enfrentadas por seus bailarinos em treinamento também foram, em grande medida, enfrentadas por ela própria, tanto em termos econômicos quanto técnicos e de convenções sociais: “Meu corpo não seguia os padrões de bailarina: negra, quadril largo, bunda grande. As pessoas riam de mim quando eu confessava que queria mesmo era ser bailarina”.(LUZ, 2005)[8]
Além das dificuldades técnicas, econômicas e sociais, a coreógrafa contou que enfrentou preconceitos para com a opção artística feita já na juventude. Em seu depoimento revelou aspectos de seu difícil percurso no universo da arte:
A fala de Carmen Luz deixa entrever que fundamentando a visão estética, há uma forte preocupação social em seus discursos. Seja no palco, nas temáticas abordadas, nas atividades desenvolvidas, aparece o pensamento político e engajado:
Para executar sua dança, os dançarinos são treinados em diversas técnicas. São trabalhos corporais possibilitados pelo Sistema Laban, pela Dança Afro-brasileira, por Jogos Teatrais, pelo Ballet Clássico e pelo Jazz (LUZ, 2005)[11] . Essa reunião de diferentes técnicas de movimentação é uma das características da dança contemporânea, gênero que:
A preocupação com o corpo bem treinado é apenas uma entre várias outras. Para dançar na companhia é preciso engajamento. O entendimento do projeto e do processo por cada participante é parte importante na construção estética do grupo. A dança de Carmen Luz, nas palavras da coreógrafa:
Tal comprometimento explicita sua preocupação formadora, faz dessa dança meio de comunicação não só de técnica de movimentação. É importante observar que nem se chegou a abordar a questão do público, da audiência. A atividade em prol da cidadania se dá antes com os próprios participantes da companhia que têm acesso a informações sobre arte, dança, negritude, preconceito racial, econômico e social, trabalho, enfim, a uma visão de mundo mais ampla.
O Grupo Teatro Novo teve seu início por volta de 1980, com o nome Grupo Sol, direção do psicólogo Rubens Gripp e com participação de pessoas com deficiência intelectual. O diretor buscava inserção social e valorização dos portadores de Síndrome de Down, que, por meio do trabalho com o teatro, as discussões promovidas, motivar-se-iam para a construção de sua cidadania.
A equipe do Teatro Novo é composta pelo diretor e uma assistente de direção, Cristina Guimarães; tem a colaboração de uma estudante de comunicação, dois cenógrafos, duas figurinistas, quatro fotógrafas e um webdesigner, que não possuem vínculo permanente com o grupo e auxiliam quando têm disponibilidade. Os ensaios ocorrem duas vezes por semana: no Centro de Artes UFF, em Niterói e no teatro Cacilda Becker, no Rio de Janeiro. (GRUPO TEATRO NOVO, 2007)[13]
Vinte participantes freqüentam o grupo em aulas de teatro e dança, mas o Teatro Novo está sempre aberto a outros interessados. Há o grupo principal de 10 atores que viajam para apresentações. Em sua maioria os atores têm Síndrome de Down e freqüentam escolas ou instituições especializadas. As peças possuem caráter informativo, trabalhando temas como cidadania, preconceito, trabalho, segurança no trânsito[14].
Na apresentação do espetáculo O Trânsito, o cenário era simples, assim como a linguagem, clara e objetiva, acessível ao público, em grande parte composto por crianças. Além da atuação de atores comumente afastados dos palcos devido a sua “diferença”, a peça se mostra como um local de troca de experiências e construção de conhecimentos. Ao final do espetáculo é aberto um espaço para interação entre público, atores e produtores. Nessa hora os espectadores fazem perguntas, tiram dúvidas, dão sugestões, criticam. A consolidação da comunicação, da troca de informações ocorre nessa parte do espetáculo. A importância dessa troca de lugar, de olhar sobre o outro, o diferente, é importante para os atores, uma vez que conseguem se fazer ouvir e mostrar o seu potencial, e para o público ouvinte, que começa a se questionar sobre atitudes e convicções.
O grupo distribui folhetos com informações gerais sobre seu trabalho, com espaço para cadastro de espectadores e para sugestões. Uma outra ficha é dada ao público: de um lado, o espectador coloca informações sobre o que sabe do assunto da peça antes de assisti-la, e, do outro, o que aprendeu após a apresentação. Essa é uma ferramenta bastante interessante para avaliar o entendimento do público e a eficácia da transmissão de informações.
O ensaio é um espaço essencial para o desenvolvimento dos participantes. Conforme diz o diretor do grupo, Rubens Gripp, o teatro é sua universidade; é o local para a construção do conhecimento. Por isso, é gasto um tempo considerável, ao início do ensaio, para exposição de sentimentos, acontecimentos recentes e anseios. Isso revela uma preocupação, por parte dos coordenadores, de abrir espaço a vozes que encontram poucos ouvintes fora desse ambiente.
Nesse momento de interação surgem os temas das peças. Gripp instiga o grupo: “Temos de fazer uma nova peça. Sobre que assunto vocês querem falar?” À época da observação (2006), era transmitida a novela Páginas da vida, na Rede Globo, em que uma menina com Síndrome de Down, Clara, fora adotada por uma médica bem sucedida. Notou-se a influência dos meios de comunicação na rotina dos participantes: todos assistiam à novela e queriam falar sobre esse caso. A partir disso, foi levantada outra pergunta: “É comum adotarem uma criança com síndrome de Down?” Com isso, os participantes subiram ao palco e começou a ser construída uma nova peça, de acordo com o ponto de vista de cada um, suas experiências e criatividade
Em relação à manutenção do grupo Teatro Novo, Gripp revelou que encontra dificuldade para conseguir patrocínio, mesmo apresentando incentivos fiscais, pelas Leis Rouanet e do ICMS. Apesar disso, o diretor acredita no potencial do teatro como forma de inserção social e meio de informação, em que vozes excluídas pelos grandes meios de comunicação de massa informam de maneira alternativa.
O grupo Periferia em Ação teve seu início, em 2003, no movimento social popular SOS Periferia, na cidade de São Gonçalo. O movimento começou com um grupo de mulheres da comunidade do Salgueiro que buscava mudar sua realidade e teve como objetivo, a princípio, capacitação profissional, geração de renda e criação de espaço para “cultura”, lazer e troca de conhecimento. Com apoio da comunidade, o movimento se expandiu e começou a buscar formas alternativas para expressar idéias, propor mudanças e conscientizar. Jovens das comunidades pertencentes ao movimento passaram por uma capacitação feita pelo Centro de Teatro do Oprimido (CTO-Rio) e lhes foi apresentada uma proposta incomum: “[...] um tipo de fazer teatro que conscientiza primeiramente o indivíduo sobre o problema, a fim de que o reconheça, lute contra a dificuldade e transforme a realidade indesejada” (NAZARETH, 2007)[15].
Durante o trabalho de observação acompanhamos a apresentação da peça A Descoberta de Trancinha que contou com a participação de nove jovens e adultos, atuais integrantes do grupo principal. Inicialmente, os integrantes recebiam uma ajuda de custo da ONG Campo (CENTRO DE ASSESSORIA AO MOVIMENTO POPULAR, 2007)[16], que busca fortalecer grupos populares de baixa renda em atividades em prol da cidadania. Contudo, com o elevado número de apresentações ao longo dos três anos, o dinheiro teve de ser destinado ao pagamento dos custos com as apresentações. Enfim, foi preciso reduzir a quantidade de apresentações e os atores participariam sem receber ajuda de custo.
A peça A Descoberta de Trancinha, cujo tema era sexualidade e gravidez precoce, participou da 1ª Mostra do Trabalho Social de São Gonçalo, realizada em uma praça pública no Centro da cidade. A encenação contou com um público em torno de 50 pessoas e, devido ao curto tempo disponível, houve apenas uma intervenção[17] ao final do espetáculo – teve caráter informativo, em linguagem coloquial, com utilização de gírias e de fácil assimilação.
A metodologia do teatro do oprimido, de Augusto Boal (2003), pode ser entendida, resumidamente, como a apresentação de situações que não fazem parte do desejo dos oprimidos e que são impostas por um opressor, gerando conflito. No lugar de esperar a mudança da realidade, os próprios oprimidos devem buscá-la.
Em montagens do teatro do oprimido, há sempre um Coringa – que apresenta a peça, faz a integração entre público e personagens, estimula a participação dos espectadores e sua transformação em espect-atores. Na peça apresentada, personagem Trancinha (oprimida) vê sua vida e seus desejos oprimidos por sua mãe (opressora), que não permite que a filha viva as descobertas da adolescência. Cheia de incertezas e falta de esclarecimento, Trancinha engravida, é expulsa de casa e julgada por conhecidos e desconhecidos. Nesse momento, a Coringa interrompe a peça e propõe que algum espectador substitua um personagem, a fim de transformar aquela realidade. Ela faz perguntas como: “Vocês concordam com o que está acontecendo com Trancinha?”, “Que idéias foram surgindo no decorrer da peça?”, “Se vocês não propõem nada, são concordantes com essa opressão...” Nessa hora os espectadores ganham voz, a atenção de todos se volta para eles e suas idéias. O teatro cria um espaço de troca que irá ajudar a mudar a realidade indesejada.
Em entrevista realizada com três atrizes da peça, Renata Moura, Michele Santos e Ana Paula, ficou claro como o teatro ajudou a transformar a realidade de cada um dos integrantes da peça, além de apresentar alternativas para a mudança da vida de muitos espectadores. Mesmo não possuindo resultados de uma pesquisa de opinião formal, o grupo busca avaliar a eficácia da mensagem transmitida pelas intervenções do público, pelo debate que o grupo realiza após o espetáculo e por relatos recebidos depois das apresentações.
Michele Santos contou que considera o teatro um bom meio de levar informação e arte às comunidades. Ainda que haja tabu para tratar de temas como sexualidade, gravidez, drogas e violência familiar, entende que seja importante o esclarecimento pelo teatro. A própria atriz se mostrou exemplo de como a transformação exercida pelo teatro é possível: segundo ela, em sua casa não havia espaço para o diálogo e o teatro estimulou a expansão de seu horizonte intelectual, sua criatividade e vontade de mudar assim como sensibilizou sua mãe também, hoje mais aberta para ouvir e esclarecer. (MOURA; SANTOS, 2007)[18]. A par dos aspectos favoráveis, as atrizes têm noção das limitações de seu trabalho. Renata Moura explicou: “Sabemos que não iremos mudar a realidade de uma hora pra outra, mas conscientizando um que seja, esse já será multiplicador para várias pessoas” (MOURA; SANTOS, 2007)[19].
Sua tarefa, nesse sentido, é claramente formadora, comunicadora, e sua intenção, revolucionária. Como acontece na Companhia Étnica e no grupo Teatro Novo, no Periferia em Ação esse processo começa a acontecer no âmbito interno do grupo. Atores e dançarinos passam pelo processo antes de buscar transmiti-lo a outros. Esse trabalho se coaduna com a proposta de Augusto Boal:
Queremos conquistar identidade e cidadania, porém só seremos cidadãos se formos capazes de intervir na sociedade e transformála naquela que desejamos, pois esta que temos não presta. [...] Fazendo arte, estaremos dizendo o que pensamos, inventando a sociedade que queremos, sendo nós mesmos. Cidadãos solidários. (2003, p.156)
O trecho de Boal, rico de sentimento e de experiência política refere-se a um tipo de teatro que pouco aparece na mídia, nos cadernos culturais e na programação de artes e espetáculos. Contudo, esse tipo de arte engajada existe em variadas comunidades e assume importante papel informativo para seus próprios participantes e depois, para as audiências.
Teatro e dança cênica chegam ao século XXI como formas de arte potentes, por vezes ligadas a meios de comunicação, com intenções comerciais, mas também capazes de exprimir opiniões e abrir espaço para vozes pouco ouvidas pelos meios de massa e por instituições como governos, escolas e pela própria sociedade.
No século XX, autores como Brecht e Ionesco, no âmbito mundial e Oduvaldo Vianna Filho, Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, entre os atuantes no Brasil, contribuíram para mostrar como essa arte pode ser utilizada para transgredir valores impostos, permitir que oprimidos consigam lutar contra seus opressores (BOAL, 2003), proporcionar meios para que a própria sociedade consiga se olhar, discutir e unir elementos que operem em prol da construção de uma consciência crítica.
No século XXI, grupos sociais menos privilegiados ainda buscam espaço dentro de comunidades, escolas, organizações não governamentais, movimentos populares e sociais, Igrejas, governo. Nesse contexto, o teatro e a dança, em suas possibilidades comunicadoras, formadoras, transgressoras, se mostram ativos e importantes meios para criticar a sociedade e propor, de forma alternativa, uma revisão de atitudes e olhares.
Na Companhia Étnica, no Teatro Novo e no Periferia em Ação, o acesso à informação é dos participantes das companhias, antes de tudo. Assim, o trabalho de desvelamento, de conscientização, o olhar crítico se desenvolve com eles antes de atingir seus familiares, vizinhos, o público ou quem assiste aos espetáculos. O processo interno do grupo já é importante na circulação da informação, na sua discussão. Assim, a conscientização se torna uma prática e um discurso de atores, atrizes, dançarinos e demais pessoas que realizam o trabalho cênico. A idéia de cidadania vai se construindo nessa rede social.
Os três grupos estudados pareceram se encaixar em uma proposta de usar o teatro ou a dança como meio e não como fim; visam, na realidade a despertar a consciência dos indivíduos em relação aos seus espaços na vida social. Não inventaram tal proposta, mas parecem importantes por mostrar outros usos para as artes cênicas; por se ocupar de atores, dançarinos e públicos não-convencionais em equipamentos culturais pagos; enfim, por reforçar a tese de que a comunicação contemporânea também se efetua com potência para além dos meios tecnológicos e de massa e que nesse trabalho, os mediadores culturais (BARBERO, 1997) jogam papel fundamental.
[1]Na Antigüidade grega, o teatro operou como meio de veiculação de mensagens mitológicas com apoio da Cidade-Estado. Na Idade Média, sob o formato dos autos de catequese, foi utilizado pela Igreja católica para propagar seus valores. No reinado de Luís XIV, na França do século XVII, a dança foi usada para conformar e formar a nobreza que freqüentava a corte do rei. (BOURCIER, 1994; MAGALDI, 1997; BARRAL I ALTET, 1990).
[2]O urinol que o pintor Marcel Duchamp expôs ao público foi um ato político, sobretudo. No universo das artes cênicas, a dançarina Isadora Duncan, e sua recusa ao corpo codificado do balé, no início do século XX, também transgrediu modelos e estéticas formalmente estabelecidas. Posteriormente, na Alemanha, a coreógrafa Mary Wigman e sua dança de expressão Ausdrucktanz,expressou pensamentos e posições críticas durante a Segunda Guerra Mundial (BOURCIER, 1994; MAGALDI, 1997; BARRAL I ALTET, 1990).
[3]Os direitos civis corresponderiam, entre outros, à liberdade, igualdade, ir e vir, propriedade. Os políticos referem-se ao direito de unir-se em organizações políticas e os sociais, dizem respeito ao direito de trabalho, saúde, educação, aposentadoria (VIEIRA, 1997, p.22).
[4]Na grande Tijuca: Morros dos Macacos, Borel e Formiga; mas também há jovens de outros bairros e cidades próximas: Engenho de Dentro, Ricardo de Albuquerque, Maré, Manguinhos, Morro da Providência, São Gonçalo e municípios da Baixada Fluminense. Com apoio da Petrobras, desenvolveu o Projeto ENCANTAR – Capacitação em Artes Cênicas, que funciona na sede alugada na Rua Barão de Mesquita e no espaço no próprio morro. O projeto ofereceu oficinas diárias de dança e teatro (interpretação e produção) para crianças a partir de seis anos, jovens e adultos, acesso a espetáculos de dança, teatro, eventos musicais e filmes, visitas a museus, galerias de arte e outros equipamentos culturais da cidade.
[5]Informação verbal.
[6]Informação verbal.
[7]Informação verbal.
[8]Informação verbal.
[9]Informação verbal.
[10]Informação verbal.
[11]Informação verbal.
[12]Informação verbal.
[13]Documento eletrônico.
[14]Durante essa etapa da pesquisa foram acompanhados um ensaio e uma apresentação do grupo, quando foram realizadas a observação e a entrevista com o diretor. As informações do texto foram obtidas na pesquisa.
[15]Informação verbal.
[16]Documento eletrônico.
[17]Grosso modo, seria a substituição do ator da peça por um espect-ator (espectador que assume papel de ator, entra no espetáculo), que entra em seu lugar e demonstra uma outra atitude, um outro comportamento, uma outra idéia, isto é, traça uma mudança na situação e na ação da personagem.
[18]Informação verbal.
[19]Informação verbal.
[<]ARISTÓTELES. Poética. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
[<]BARBERO, Jesús Martin.Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: EdUFRJ,1997.
BARRAL I ALTET, Xavier. História da arte. Campinas: Papirus, 1990.[<]BOAL, Augusto. O teatro como arte marcial. Rio de Janeiro: Garamond, 2003.
[<]BORNHEIM, Gerd. O sentido e a máscara. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 1992.
BOURCIER, Paul. Histoire de la danse en Occident. Paris : Seuil, 1994. 2v.[<]CENTRO DE ASSESSORIA AO MOVIMENTO
POPULAR. 2007. Disponível em:
[<]GRUPO TEATRO NOVO. Disponível em:
[<]HABERMAS, Jürgen. Conhecimento e interesse. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
[<]LUZ, Carmen. Companhia Étnica de Dança e Teatro. 2005. Entrevista informal concedida a Denise Siqueira em julho de 2005.
MAGALDI, Sábato. Iniciação ao teatro. 6.ed. São Paulo: Ática, 1997.[<]MINAYO, Maria Cecilia de S. (Org.). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 9. ed. Petrópolis: Vozes, 1994.
[<]MOURA, Renata; SANTOS, Michele. A Descoberta de Trancinha. 2007. Entrevista informal concedida a Denise Siqueira em julho de 2007.
[<]NAZARETH, Janete. Movimento Social Popular SOS Periferia. 2007. Entrevista informal concedida a Denise Siqueira em julho de 2007.>
[<]SANTAELLA, Lucia. Por que as comunicações e as artes estão convergindo? São Paulo: Paulus, 2005.
[<]SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.
[<]VIEIRA, Liszt. Cidadania e globalização. Rio de Janeiro: Record, 1997.