A construção de sentidos sobre a homossexualidade na mídia brasileira


Vicente William da Silva Darde


1 Introdução
2 A homossexualidade no Brasil
3 Disputa entre gêneros: reprodução da desigualdade
4 A construção do discurso jornalístico
5 A homossexualidade no Globo Repórter
6 Considerações finais
Notas
Referências

RESUMO
O jornalismo, entendido como construtor de sentidos sobre a realidade, é um discurso que deve representar a diversidade de pensamento da sociedade contemporânea. No entanto, as representações dos gays criadas a partir do discurso jornalístico podem determinar e/ou intensificar o processo de marginalização dos homossexuais na sociedade, excluindo-os do exercício da cidadania e contribuindo para o crescimento da homofobia. A partir de uma análise teórica, buscamos contribuir neste artigo para a discussão sobre a construção da homossexualidade pela imprensa brasileira. A busca pelo reconhecimento social, amparada num discurso de conquista da cidadania, será bem sucedida quando a imprensa transformar o caráter arbitrário da cultura dominante na sociedade brasileira em culturas paralelas entendidas como diversidade.
PALAVRAS-CHAVE:Jornalismo. Práticas culturais. Homossexualidade.


1 Introdução

Considerando-se a natureza pública e o compromisso social do campo jornalístico, pode-se afirmar que o jornalismo é um discurso que deve representar a diversidade de pensamento da sociedade contemporânea. Um dos principais deveres do jornalismo é o de dar lugar à pluralidade das vozes sociais, expressando a multiplicidade de formas culturais e incluindo os que parecem viver à margem da sociedade. O campo jornalístico, enquanto lugar de fala legitimado sobre a realidade contribui para a definição de papéis e da afirmação de valores e sentidos na sociedade.

O conjunto de informações gerado na sociedade é trabalhado pelos meios de comunicação, que organizam esse conteúdo de acordo com um conjunto próprio de estratégias comunicativas. Ao definir essas estratégias, a mídia cria e reforça representações do discurso social hegemônico. Um dos pressupostos da atividade jornalística é o de fornecer o maior número de informações possíveis acerca de um fato para que o público tire suas próprias conclusões. Esse processo, que pode ser entendido como desnaturalização, a partir do distanciamento do jornalista em relação ao fato, entra em choque com a constante naturalização das rotinas de produção dentro das redações.

Os fatos imediatos do cotidiano transformados em notícia, são compreendidos como “naturais”, e não socialmente construídos através dos múltiplos discursos. Essa perspectiva condiciona também a forma como os indivíduos e os comportamentos são compreendidos pela mídia, ou seja, numa perspectiva essencialista e universalizante, que não leva em conta os processos culturais historicamente construídos nas sociedades, tomando-os sempre pelo viés da “natureza”. Este viés se fundamenta em perspectivas do pensamento psico-biomédico, via de regra, utilizado para dar conta de fenômenos sociais.

Essa perspectiva naturalizante dos sujeitos e dos comportamentos sociais por parte da mídia é o eixo que norteia a construção de sentidos sobre a representação das relações de gênero e sexualidade na sociedade contemporânea. Mais do que isso, ela se funda num padrão normativo ocidental hegemônico – a heteronormatividade[¹] – que, além de partir do pressuposto da heterossexualidade compulsória, hierarquiza e atribui valores aos sujeitos, às feminilidades, às masculinidades, aos arranjos sócio-afetivos e familiares, à sexualidade e às relações de poder. É através do conceito de heteronormatividade que entendemos estarem fundados os valores-notícia responsáveis pela produção de discursos e sentidos sobre comportamentos, indivíduos e grupos na sociedade pela mídia.

Desse modo, este artigo busca contribuir para a discussão sobre a construção de sentidos sobre a homossexualidade pela imprensa brasileira. As representações dos gays criadas a partir do discurso jornalístico podem determinar e/ou intensificar o processo de marginalização dos homossexuais na sociedade, excluindo-os do exercício da cidadania e contribuindo para o crescimento da homofobia.


2 A homossexualidade no Brasil

A mudança da homossexualidade nas últimas décadas no Brasil deve ser compreendida a partir da conjunção de diversos fatores políticos, econômicos e sociais. Processos como a industrialização e urbanização, além da consolidação da sociedade civil, que ocorreram a partir do final da década de 1970, tiveram um impacto na vida dos brasileiros. Essas mudanças influenciaram o aparecimento de estilos, identidades e comunidades sexuais no Brasil de forma bastante tangível. Como enfatiza Parker (2002, p.294), “[...] o capitalismo e a vida gay têm estado intimamente ligados”. Comunidades gays e subculturas homoeróticas foram se estabelecendo nas mais diversas regiões do Brasil, como resultado da interação entre sistemas sociais e culturais e forças econômicas e políticas generalizadas. Os gays são vistos, principalmente, pelo poder de compra que detêm, e atraem cada vez mais empresas interessadas em explorar novos nichos de mercado.

Na década de 1990, o Projeto de Parceria Civil Registrada entre pessoas do mesmo sexo, de autoria da ex-deputada federal Martha Suplicy (PT-SP), foi um marco importante para a discussão da homossexualidade no País. Desde sua apresentação na Câmara dos Deputados, em 1995, o projeto desencadeou várias reações entre os brasileiros; católicos, protestantes e conservadores atacam o projeto, argumentando que ele legitimaria uma união imprópria que ameaçaria a manutenção da família; grupos organizados de gays, parlamentares politicamente corretos e simpatizantes com a causa defendem os direitos civis para gays e lésbicas.

No Brasil, nos deparamos com a mesma dificuldade encontrada em outros países com relação à aprovação do projeto, pois a cultura enraizada em nossa sociedade está ligada aos ensinamentos da igreja, que eleva a homossexualidade à categoria de ‘pecado’ e prática ‘anti-natural’. Dessa maneira, a influência dos católicos e protestantes na visão da sociedade determinou que esta desenvolvesse uma homofobia, ou seja, uma aversão à homossexualidade.

Países como Dinamarca, Espanha, Bélgica e Holanda deram um grande passo para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária no que diz respeito aos direitos civis com a aprovação da lei que permite a união civil entre pessoas do mesmo sexo. E mais: esse passo permite desconstruir um dos maiores tabus existentes na humanidade, o de que a homossexualidade é ‘anormal’, um desvio sexual, doença, pecado, desequilíbrio emocional, e outras classificações que são atribuídas pelos conservadores e religiosos.

A prática homossexual era um modelo comum em diversas tribos pré-históricas e em povos como os egípcios, os gregos, os romanos e os indianos. Havia uma adoração à sedução de um jovem, ao culto da prostituição masculina, ao falo. Porém a visão da sociedade quanto à identidade sexual começou a mudar quando a igreja relacionou a moralidade com a conduta sexual, criando uma tradição que proibia qualquer forma de relação sexual que não fosse entre homem e mulher com o objetivo da procriação, assim como Adão e Eva.

Diversos fatos contribuíram para a desconstrução do preconceito, como a posição da Medicina e da Psicologia, que deixaram de classificar a atração pelo mesmo sexo como doença e passaram a definir a homossexualidade como uma orientação sexual. Estudiosos afirmam que nossa sexualidade é produto de condições históricas específicas e que o sentido de gênero é principalmente construído e não determinado biologicamente. A expressão da sexualidade é influenciada pela tradição, cultura, economia, propriedade de terra, número de mulheres em idade de procriar, princípios éticos, tudo que se pode chamar de estrutura político-social de uma sociedade.

O surgimento de grupos organizados de homossexuais no País e no mundo também foi significativo para a busca por respeito e direitos iguais. No Brasil, por exemplo, não existe nenhuma lei que criminalize a homossexualidade, e algumas cidades e estados proíbem a discriminação do “amor que não ousa dizer o seu nome”, como definiu o escritor inglês Oscar Wilde. Porém, o comportamento da sociedade de uma forma geral ainda revela que existe muito caminho a percorrer para eliminar a homossexualidade da lista das palavras proibidas.


3 Disputa entre gêneros: reprodução da desigualdade

A manutenção da heteronormatividade não se dá pela exclusão do discurso sobre a homossexualidade, e sim por torná-la excêntrica, exótica, transformando-a em um “estilo de vida” da minoria da população, reforçando a hegemonia da norma heterossexual. A heteronormatividade também é reforçada no momento em que leva os homossexuais a quererem adotar normas e valores entendidos como heterossexuais, como o “casamento”.

A heteronormatividade é um conceito complexo, plural e atravessado por diversas questões como gênero, sexualidade, desigualdades sociais e étnico-raciais. Embora quase sempre associada à heterossexualidade, a heteronormatividade vai “além” dela e está relacionada às normas pelas quais nossa sociedade está organizada. Sendo assim, tudo que se opõe ou se diferencia dela é considerada “o outro”, como “desviante”. Nesse sentido, é interessante observar que mesmo para as tentativas de transgressão da heteronormatividade, ela é o modelo. Ou seja, a norma é importante, inclusive, como paradigma da sua própria transgressão. Desse modo, podemos dizer que a transgressão também é criada pela heteronormatividade.

A discriminação sofrida por homossexuais pode ser entendida também pela disputa de poder entre as relações de gênero e sexualidade. Louro (2001) explica que gênero se refere a um conceito elaborado por estudiosas feministas para assinalar o caráter fundamentalmente social das distinções baseadas no sexo. Dessa forma, os gêneros feminino e masculino não estariam ancorados na biologia. Os gêneros, construídos e reproduzidos socialmente não são, como afirma a autora, resultados de um acidente biológico, e sim entendidos como resultado de múltiplos discursos, símbolos, regras e representações. Dessa forma, todas as instituições sociais estão implicadas nessa produção, entre elas a imprensa. Mas os jogos de poder nas relações de gênero são complexos, pois o masculino é entendido como o dono do poder, e o feminino desprovido de tal propriedade.

O conceito de sexualidade também nos faz pensar nessa disputa entre os gêneros e a reprodução da desigualdade. Segundo Louro (2001), a sexualidade tem a ver com a forma como socialmente vivemos nossos prazeres e desejos, com a forma como usamos nossos corpos. Então, homens e mulheres não deixam de ser masculinos ou femininos por exercerem sua sexualidade com parceiros do mesmo sexo. Há muitas formas de masculinidade e feminilidade, mas a sociedade reproduz e mantêm apenas uma forma de cada um como “normal”.

A compreensão da natureza das interações sexuais dificilmente pode ser isolada da construção social do gênero. A distinção simbólica entre a atividade masculina e a passividade feminina vai determinar a construção da homossexualidade no imaginário coletivo. Com base em sua passividade percebida e feminilidade internalizada, o homossexual é visto como uma espécie de fracasso segundo avaliações biológicas e sociais, dentro do jogo de poder estabelecido na sociedade entre o masculino e o feminino. A partir dessa análise, Parker (2002) afirma não se surpreender que o homossexual esteja sujeito à violência simbólica mais severa, principalmente a física, “que serve para estigmatizar e marginalizar performances de gênero desviantes enquanto, ao mesmo tempo, reforça padrões normativos de masculinidade e feminilidade”. (PARKER, 2002, p. 57).

A mídia, enquanto instância social que pode tanto legitimar quanto silenciar grupos e sujeitos sociais, deve perceber que é determinante nesse jogo de poder. A compreensão mais ampla da identidade sexual e da sexualidade, e sua construção histórica, é que pode contribuir para perturbar a tranqüilidade da heteronormatividade reproduzida na sociedade.


4 A construção do discurso jornalístico

Da ação que constitui o fato à publicação e circulação do texto jornalístico na sociedade há uma dimensão na qual diversos conceitos, como a verdade e a objetividade, são freqüentemente questionados dentro e fora do meio acadêmico. Afinal de contas, a notícia é escrita a partir do olhar subjetivo de uma pessoa (ou mais de uma, em muitos casos). Se o texto é redigido a partir do ponto de vista de alguém sobre o fato acontecido, de que forma se legitima o discurso jornalístico? De que forma se dá o processo de transformação do fato em texto jornalístico, ou, ainda mais especificamente, quais são as características de um fato para que seja transformado em notícia?

Os debates gerados acerca dos problemas do acontecimento e da objetividade no campo jornalístico são fundamentais para a definição do conceito de notícia. Um paradoxo do mundo do jornalismo, apontado por Gomes (1993), é a insistência dos jornais em afirmar a própria veracidade e a lamentação dos jornalistas e dos leitores/espectadores com a ausência de compromisso com a verdade que domina o mundo do jornalismo. Gomes (1991) afirma que a verdade buscada pelo jornalismo é a objetividade, ou seja, fidelidade ao objeto ou ao fato. Mas como o jornalista – aquele encarregado de narrar o acontecido - cria um distanciamento em relação ao fato? O autor(1991, p.30) recorre ao tema do interesse para explicar que “[...] a compreensão de um objeto, a completude da interpretação, é possível apenas enquanto o intérprete e o ‘texto’ pertencem-se reciprocamente.” Dessa forma, a compreensão não é um conhecimento de algo que se apresenta como um estranho a ser apreendido, e sim daquilo que já faz parte do ambiente do grupo social. A partir dessa análise do envolvimento do sujeito com as coisas e os fatos, o problema do fato jornalístico acentua-se, na medida em que a ingenuidade com relação à imparcialidade da notícia, ou melhor, daquele que redige o texto jornalístico, é desmascarada.

O equilíbrio no jornalismo, como entendemos, não está vinculado à imparcialidade, mas sim à independência que deve reger a relação dos meios de comunicação com toda a sociedade. Para Chaparro (2005, p.205), “[...] é bom lembrar que para o bom jornalismo os conflitos a serem narrados e a comentar sempre têm pelo menos três lados: os lados dos interesses oponentes e o lado dos valores da sociedade.” A independência para poder mostrar esses lados é obrigação do jornalismo. O autor completa que a precisão e a busca da veracidade são importantes no registro dos fatos e na escolha subjetiva das significações atribuídas aos discursos.

As propriedades do campo jornalístico são preponderantes para a discussão sobre as funções da notícia. Bourdieu (1997) destaca que, na lógica específica de um campo orientado para a produção desse bem altamente perecível que são as notícias, a concorrência pela clientela tende a tomar a forma de uma concorrência pela prioridade, isto é, pelas notícias mais novas - o furo - e isso, tanto mais evidentemente, quanto se está mais próximo do pólo comercial. A valorização da informação em função de sua atualidade favorece uma espécie de amnésia permanente que leva a uma propensão de se julgar os produtores e produtos segundo a oposição do novo e do ultrapassado.


É importante sublinhar que as notícias, ainda que ajudem as pessoas a interpretar a realidade, não a interpretam por si mesmas. A visão de Park, nesse sentido, está muito marcada pelo ideal da objetividade das notícias e por uma tentativa de separar sempre a opinião da informação. (BERGANZA, 2000, p.365).

Que tipo de conhecimento é proporcionado pela notícia? Park (1972) foi o primeiro teórico que caracterizou as notícias como uma forma de conhecimento. Em abordagens anteriores, quando o método científico foi escolhido como o único parâmetro adequado para conhecer e dominar o mundo, toda a tentativa de conhecimento estabelecida à margem deste padrão foi desmoralizada, inclusive o jornalismo.

Utilizando-se das distinções entre as duas formas de conhecimento [2] apontadas por William James, Park sublinha que as diferentes formas de conhecimento têm funções distintas na vida das pessoas e da sociedade e não devem ser consideradas como um único tipo de conhecimento, mas como possuindo níveis distintos de precisão e de validade. O autor afirma ainda que, entre a familiaridade com as coisas e o conhecimento delas, existe um continuum no qual podem situar-se todas as formas de conhecimento, incluindo as notícias. Acerca da natureza e da função das notícias, Park afirma que as notícias proporcionam um tipo de conhecimento distinto da história, pois se referem a acontecimentos isolados e não procuram relacioná-los uns aos outros.


Como forma de conhecimento, a notícia não cuida essencialmente nem do passado nem do futuro, senão do presente – e por isso foi descrita pelos psicólogos como o presente “especioso” [...] A notícia só é notícia até o momento em que chega às pessoas para as quais tem “interesse noticioso”. Publicada e reconhecida a sua significação, o que era notícia se transforma em história. (PARK, 1972, p.175).

Meditsch (1997) lembra que outras correntes teóricas oferecem bases de apoio não só para aceitar como também para definir a especificidade do jornalismo enquanto conhecimento. No processo de produção do conhecimento, defende o autor, o jornalismo não revela mal nem revela menos a realidade do que a ciência: ele simplesmente revela diferente. Pode mesmo revelar aspectos da realidade que os outros modos de conhecimento não são capazes de revelar. A reprodução deste conhecimento pelo jornalismo também se realiza de uma forma diferenciada.


O jornalismo não apenas reproduz o conhecimento que ele próprio produz, reproduz também o conhecimento produzido por outras instituições sociais. A hipótese de que ocorra uma reprodução do conhecimento, mais complexa do que a sua simples transmissão, ajuda a entender melhor o papel do jornalismo no processo de cognição social. (MEDITSCH, 1997)[3].

No entendimento de que o jornalismo contribui para a construção da realidade e que dessa forma está fortemente relacionado com a normatividade vigente (seja no partilhamento de valores, seja na reprodução destes), parte-se da hipótese de que o mesmo contribui para reforçar os valores dominantes da sociedade, indiretamente trabalhando para a manutenção do status quo, ou seja, para a heteronormatividade. É importante ressaltar que não se trata de pensar o jornalismo de forma maniqueísta, atuando perversa e deliberadamente nesse sentido, mas sim na perspectiva de compreender as notícias como resultado das imbricações do próprio jornalismo com a cultura na qual está inserido.


5 A homossexualidade no Globo Repórter

Para buscarmos entender a construção de sentidos de casais gays pela mídia brasileira, tomando como exemplo o programa Globo Repórter, veiculado pela TV Globo no dia 9 de maio de 2008. No início da reportagem, o menino é representado igual aos demais, ele joga futebol, o que reforça sua masculinidade heterossexual. Mostra-se que sua vida é normal, comum como a dos outros meninos. A rigidez com relação à educação, sabendo a hora em que a criança deve brincar e a hora dos estudos. A mãe é presente, atuante, zelosa, cumprindo com o seu papel de mulher, um exemplo de mãe e dona de casa:


Lucas tem 9 anos. Junto com a turminha da rua, adora jogar bola. Em casa, videogame. Mas a pedagoga Rosangela Martins Dias, mãe dele, está sempre de olho no relógio. Rotina de criança é coisa séria! Vestir o uniforme, almoçar e ficar prontinho à espera da condução para a escola.

A reportagem segue afirmando que ela foi mãe solteira, caracterizando o sofrimento de se cuidar de uma criança sozinha. Para isso, é preciso de uma outra pessoa para dividir responsabilidades e até mesmo custos:


“No começo, éramos só nós dois. Era eu para tudo. Eu me sentia bem sozinha, tendo que cuidar de tudo – da casa, das contas, do filho. Tinha que colocar na creche, dar educação, saúde”, diz Rosangela, que foi mãe solteira.

Então entra uma terceira pessoa, que vem para desafiar a justiça (aqui poderia se dizer a sociedade, representada por essa instituição). Nesse fato entra o diferencial, o estranhamento, o valor-notícia necessário para estar no programa:


Mas os dois não estão mais sozinhos. A técnica de administração Rosiere de Lima entrou na vida de Rosangela com uma determinação que desafiou a Justiça brasileira: adotar Lucas como filho também. E conseguiu! Está na certidão de nascimento e na carteira de identidade dele.

A reportagem segue mostrando que entre os vizinhos existem famílias tradicionais. O casal de lésbicas e a criança são uma família diferente, todas as outras são iguais perante a sociedade, sem distinção. Não importa se os casais têm filhos legítimos, se também têm formações familiares diferenciadas, aqui o que vai marcar é a heteronormatividade:


Se você nunca viu nada igual, não se preocupe. Também foi novidade para a vizinhança em Porto Alegre. Em uma casa moram Estela, José e três filhos. Em outra, Mara, Luis e um casal de filhos. E, em outra, Luíza, Souza e dois filhos. A chegada de uma família diferente dos padrões tradicionais poderia ter sido motivo de preconceito, de fofocas. Mas não naquela rua, onde Rosângela, Rosiere e Lucas estão entre os moradores mais queridos.

A homossexual vai reforçar que eles tiveram a sorte de serem tratados bem. Indica uma certa normalidade pela exclusão de casais homossexuais, como se não fosse um direito de fato de serem respeitados enquanto cidadãos.


“Não tem nada de olhares diferentes. Tivemos muita sorte em relação as nossas famílias e aos nossos amigos”, diz Rosiere.

A equipe de reportagem produz uma reunião dos vizinhos na rua, como forma de reforçar que eles se encaixaram naquele padrão heteronormativo, por isso são aceitos. Eles são “legais”.


A sala de estar ganha a calçada e todos se encontram no fim da tarde. Afinal, estão em casa. “As gurias ficam aqui quando precisamos sair. Às vezes, quando alguém sai no fim de semana, um olha a casa do outro. Sem falar quando falta farinha, cebola, sal, essas coisas”, conta José Carlos.

A reportagem mostra que o juiz recorreu a fontes legitimadas pela sociedade para decidir sobre a adoção, e dá o parecer favorável. Mas entra o discurso jurídico de que a adoção foi aceita sob critérios de organização familiar, entendidos como satisfatórios para que a criança cresça feliz. Não se questiona a legitimidade da união homossexual.


O juiz da Infância e da Juventude José Antônio Daltoé Cezar procurou outros juristas, psicanalistas e psicólogos antes de decidir sobre a adoção de Lucas. “Os nossos técnicos fizeram uma avaliação e me trouxeram a informação de que aquela família estava bem organizada e feliz, que seria bom para todo mundo o instituto da adoção de Lucas por outra mãe. Então, eu não podia decidir de forma contrária a isso”, diz.

6 Considerações finais

Em nosso entendimento, a representação dos casais gays no Globo Repórter se dá numa perspectiva que tende a enquadrá-los numa norma, a heteronormatividade, capaz de lhes conferir legitimidade para serem retratados pela mídia. Percebemos que nem sempre a visibilidade de questões diversas às normas sociais, como a homossexualidade, é construída através de discursos que visam assegurar o exercício da cidadania, como se esperaria de um papel democrático dos meios de comunicação.

Compreendemos que as instituições legitimadas na sociedade – igreja, escola e mídia, entre outras – constroem e reforçam as práticas culturais hegemônicas, baseadas na normalidade da heterossexualidade. Sabemos que a influência da mídia nas práticas sociais se exerce a partir de um complexo jogo de poder, onde há sempre uma negociação, e, por isso, não podemos aceitar o conceito de que a mídia teria um poder total de controle e manipulação da opinião.

A construção de sentidos sobre as relações de gênero e sexualidade na sociedade contemporânea, por parte das instituições sociais, não pode se basear no estímulo apenas da tolerância e do respeito. A leitura que fazemos hoje do discurso jornalístico, por exemplo, na reportagem do programa Globo Repórter, mantém viva a relação entre o heterossexual tolerante e o homossexual tolerado. A compreensão mais ampla da identidade sexual e da sexualidade, e sua construção histórica, é que pode contribuir para perturbar a tranqüilidade da normalidade reproduzida na sociedade.

A subordinação dos discursos públicos às regras privadas da imprensa nos parece fundamental para essa problematização no campo do jornalismo. Diante dessa percepção da realidade, fica ainda em aberto essa questão: poderia a imprensa contribuir de forma mais efetiva para a construção de um espaço público democrático na sociedade, onde os homossexuais gozariam definitivamente dos direitos de cidadania plena, sem o fantasma do preconceito e da discriminação? Apesar da contribuição da imprensa nos últimos anos para dar visibilidade e pautar a questão da discriminação contra homossexuais na sociedade, suscitando uma consciência pública de combate ao preconceito, ainda há um longo caminho a percorrer.


Os movimentos sociais com poucos recursos têm dificuldades em ver os seus acontecimentos transformados em notícia. Se pretendem jogar no tabuleiro do xadrez jornalístico, precisam ajustar o seu modo de interação organizacional aos modos das organizações estabelecidas. A cobertura do movimento social depende em parte da capacidade de [...] demonstrar a sua vontade de participar na teia de faticidade que sustenta o trabalho jornalístico. (TRAQUINA, 2004, p.198).

Nesse contexto, a mídia é preponderante para dar voz e visibilidade às minorias que buscam o direito de se representar, e não ser representado pelos grupos dominantes. A busca pelo reconhecimento social, amparados num discurso de conquista da cidadania, será bem sucedida quando a imprensa, reconhecida como instituição que legitima as práticas culturais e constrói o imaginário coletivo sobre as relações sociais, transformar o caráter arbitrário da cultura dominante na sociedade brasileira em culturas paralelas entendidas como diversidade. Nesse sentido, a construção da identidade de cidadão brasileiro fica prejudicada, principalmente quando essa identidade é atravessada pela homossexualidade, entendida como fora da norma hegemônica vigente.


The construction of homosexuality meanings in the brazilian media
ABSTRACT
Journalism, understood as a meaning builder of reality, is a discourse that should represent the diversity of thoughts in a society. Even though, the representations of gays built in journalism discourse may determinate or intensify the homosexuals’ marginalization in society. Through analysis of news about gay couples that adopted children in the TV program Globo Reporter, broadcast by of Rede Globo, we sought to contribute in this article to the discussion about the construction of homosexuality by the Brazilian media. The search for social recognition, under the discourse of citizenship conquer, will be succeeded when the media change the arbitrary meaning of dominant culture in Brazilian society into parallel cultures understandood as diversity.
KEYWORDS:Journalism. Cultural practices. Homosexuality. Heteronormativity.


La construcción de los sentidos sobre la homosexualidad en la media brasileña
RESUMEN
El periodismo, entendido como constructor de sentidos sobre la realidad, es un discurso que debe representar la diversidad de pensamiento de la sociedad contemporánea. Sin embargo, las representaciones de los gays creadas a partir del discurso periodístico pueden determinar e intensificar el proceso de marginalización de los homosexuales en la sociedad. A partir del análisis del reportaje sobre parejas homosexuales que adoptaron niños, veiculada en el programa “Globo Repórter da Rede Globo”, buscamos contribuir en este artículo para la discusión sobre la construcción de la homosexualidad por la prensa brasileña. La búsqueda por reconocimiento social, amparada en un discurso de conquista de la ciudadanía, será bien sucedida cuando los media transformen el carácter arbitrario de la cultura dominante en la sociedad brasileña en culturas paralelas entendidas como diversidad.
PALABRAS CLAVE:Periodismo. Prácticas culturales. Homosexualidad. Hetero normatividades.


Notas
[1] Por heteronormatividade, entende- se a reprodução de práticas e códigos heterossexuais, sustentada pelo casamento monogâmico, amor romântico, fidelidade conjugal, constituição de família. (CALEGARI, 2006)
[2]Park (1972) explica que os dois tipos de conhecimento observados por William James são o “conhecimento de” e o “conhecimento acerca de”. O “conhecimento de” adquirimos mais através do uso e do hábito do que de qualquer espécie de investigação formal ou sistemática. Já o “conhecimento acerca de” é formal, racional e sistemático, que atingiu certo grau de precisão e exatidão, substituindo a realidade concreta por idéias e as coisas por palavras.
[3] Documento eletrônico.

Referências

[<]BERGANZA, Rosa. O Contributo da escola de Chicago para o jornalismo contemporâneo: as reflexões de Robert Park sobre a notícia. Revista de Comunicação e Linguagens, Lisboa, n. 27, fev. 2000.

CALEGARI, Lizandro. A mulher no Cinema Brasileiro e a tentativa de afastamento da heteronormatividade: uma leitura de Dona Flor e seus dois maridos. Revista Literatura e Autoritarismo: Cinema , música e história, n 7, jan./jun. 2006. Disponível em Acessado em 10 out. 2008.

[<]CHAPARRO, Manuel Carlos; ALCÂNTARA, Norma S.; GARCIA, Wilson. Imprensa na berlinda: a fonte pergunta. São Paulo: Celebris, 2005.

[<]GOMES, Wilson. Fato e Interesse, o fato jornalístico como problema. Textos de Cultura e Comunicação, Salvador, n. 26, 1991.

[<]_________. Verdade e perspectiva, a questão da verdade e o fato jornalístico. Textos de Cultura e Comunicação, Salvador, n. 29, 1993.

[<]LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pós-estruturalista. In: VEIGA-NETO, Alfredo (et al.). A Educação em tempos de globalização. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

[<]MEDITSCH, Eduardo. O Jornalismo é uma forma de conhecimento? Conferência feita nos cursos da Arrábida, 1997. In: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação. Disponível em. Acesso em 05 fev. 2005.

[<]PARK, Robert E. A notícia como forma de conhecimento: um capítulo da sociologia do conhecimento. In: STEINBERG, Charles (Org). Meios de comunicação de massa. São Paulo, Cultrix, l972.

[<]PARKER, Richard G. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002.

[<]TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo: porque as notícias são como são. Florianópolis: Insular, 2004.2006. Monografia de conclusão do curso de Bacharelado em Jornalismo, Departamento de Jornalismo, Faculdade de Comunicação, Universidade de Brasília. Brasília, 2006.


Vicente William da Silva Darde
Mestre e bacharel em jornalismo / UFRGS
Doutorando em Comunicação e Informação / UFRGS
E-mail: vicentedarde@terra.com.br
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