Profundidade superficial e superficialidade profunda:

o dilema da pesquisa em ciências humanas entre a disciplinaridade e a interdisciplinaridade


Cláudio Clécio Vidal Eufrausino


1 Introdução
2 Vantagens e desvantagens da superficialidade e da profundidade
3 Considerações finais
Referências

RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir a necessidade de repensar o conflito entre disciplinaridade e interdisciplinaridade entendidos, então, como opostos irreconciliáveis. Tentamos demonstrar que a riqueza das ciências humanas cresce através do confronto aberto entre estas duas modalidades de pesquisa, a fim de serem preenchidas as lacunas de ambas. Por meio desta análise, procuramos dar um novo significado para os termos superficialidade e profundidade, tentando superar a antiga oposição que considera profundidade como uma coisa boa em oposição ao caráter superficial. Ao fazermos isso, estamos revendo, com auxílio da teoria de Carlo Ginsburg, a oposição entre retórica e prova, ou, em outros termos, entre factualidade e demonstração argumentativa. Através do enfrentamento dos limites, tanto da disciplinaridade quanto da interdisciplinaridade, tentamos apontar novas direções científicas, mostrando soluções capazes de estimular uma freqüente revisão dos paradigmas das ciências.
PALAVRAS-CHAVE: Disciplinaridade. Interdisciplinaridade. Retórica. Prova.


1 Introdução

A partir do relato de um sonho de infância de Leornardo Da Vinci e de uma informação proveniente de um registro territorial, afirmando que o artista – um filho ilegítimo – morava com seu pai, aos cinco anos de idade, Sigmund Freud (1970) arquitetou toda uma teoria sobre a homossexualidade do artista italiano, e como tal homossexualidade relacionava-se aos principais elementos da psicanálise, linha de pensamento que o pensador alemão estava, então, “fundando”. O status que o estudo da mente adquiriu no século XX, tornando-se uma área circunscrita (a Psicologia), atesta os efeitos das idéias de Freud, as quais lastreiam investigações de campos diversos como a filosofia, a lingüística, a antropologia, dentre outras. O autor chega a adquirir uma aura “santificada” e, provavelmente, se alguém perguntasse em meio a um grupo de pesquisadores se eles consideram Freud um modelo de como deve um cientista proceder ao realizar seus trabalhos de pesquisa, a resposta seria: sim. Certamente os entrevistados diriam que as pesquisas de Freud se encaixam nos seguintes critérios apontados como atributos de uma pesquisa feita com rigor: coerência, verdade, demonstração e prova (bases empíricas controláveis publicamente pela comunidade científica), alcançando consensos sólidos e extensos (GOMES, 2003, p. 320, 324).

Porém, se mencionássemos uma afirmação de Freud, sem dizermos que foi feita por ele, as opiniões, direcionadas pelo juízo de valor que costumeiramente alicerça a avaliação do que significa o rigor científico, mudariam de direcionamento. No já referido texto sobre a análise psicanalítica do comportamento homossexual de Da Vinci, o pensador alemão se vale, para estruturar sua teorização, de uma informação fornecida por um escritor chamado Merezhkovsky sobre a suposta mãe do artista. Segue a descrição que Freud (1970, p. 96) faz do dado que utiliza: “Esta interpretação feita pelo escritor psicólogo não pode ser provada, mas é tão verossímil e está tão de acordo com tudo o que conhecemos da atividade emocional de Leonardo, que não posso deixar de aceitá-la como correta”.

Wilson Gomes (2003) foi preciso ao descrever os principais critérios do rigor na atividade de pesquisa científica, mas uma leitura movida pelo senso comum pode criar uma mistura ao interpretar estes critérios. A primeira confusão que pode ser feita é a de se tomar os termos demonstração e prova, um pelo outro, entendendo-os como sinônimo de verificação empírica ou validação exclusivamente com base na análise dos “fatos”. Como lembra Olson (1997), a época do Renascimento responde pelo impulso de separar drasticamente a interpretação (entendida como domínio de critérios que não seriam válidos para a construção racional do conhecimento, pois estariam sujeitos ao arbítrio e aos delírios da imaginação) e a verificação ou demonstração (encarada como fundamento verdadeiramente científico, assentada na constatação direta de verdades que estariam estampadas na natureza). Essa forma de pensamento está ancorada numa crença de fundo protestante ou reformista segundo a qual o acesso a Deus – manifestação suprema da verdade – deveria ser feito dispensando-se os intermediários. Trata-se de um tipo de verdade “impessoal da geometria, inteiramente demonstrável e acessível a todo aquele (até a um escravo) que Platão propôs como capaz de aceder ao conhecimento. Sob esse aspecto, não obstante as aparências, não estamos muito distantes dos gregos” (GINSBURG, 2002, p. 42). Nesse sentido, qualquer interferência subjetiva é tratada como elemento que desvirtua o conhecimento.

Mas, como argumenta Ginsburg, a idéia de que é possível apoiar a investigação científica unicamente na prova ou no requisito de caráter empírico está longe de ser um critério adotado indistintamente pelos historiadores. Na Grécia antiga, por exemplo, acreditava-se que havia diferentes tipos de prova:


Na seção da Retórica de Aristóteles dedicada às provas externas ou não técnicas encontramos, junto aos testemunhos, aos contratos e aos juramentos, a tortura também. É verdade, no entanto, que, acerca desta última, Aristóteles não tinha ilusões: ‘não há nada de fidedigno nos depoimentos prestados sob tortura (GINSBURG , 2002, p.42).

Na opinião de Ginsburg, a tortura continua sendo praticada hoje em dia, às escondidas e normalmente não em condições de legitimidade formal. Concordo com ele, mas não totalmente. Acredito que muitas arenas de debate científico (a exemplo de alguns eventos em que os pesquisadores se reúnem para discutir as “novidades” científicas) distorcem o significado dos fatores que Wilson Gomes (2003) lista como elementos configuradores da cientificidade da pesquisa. A transformação dessas reuniões em cenários de tortura depende da forma como se busca combinar e dosar os critérios de rigor científico e da exigência que é feita deles, em particular aos iniciantes na pesquisa científica.

Enquanto Gomes efetua a distinção entre demonstração argumentativa e comprovação empírica, tratando ambas com critérios igualmente válidos na atribuição do rigor à pesquisa, o que vem ocorrendo é que essas duas modalidades são tomadas uma pela outra indiferentemente, gerando determinadas conseqüências.

Primeiramente, o critério estatístico é privilegiado como fonte de validação mor das verdades científicas. Certamente os dados estatísticos têm forte peso na configuração da veracidade, mas devemos lembrar o que diz Foucault (1972) sobre o perigo que o conhecimento formalizado pode representar. Se os discursos, longe de terem uma verdade em si mesmos, se definem no conflito pelo poder, os discursos formais, ou de elevado grau de abstração, a exemplo da matemática e seus derivados (a estatística, por exemplo), concentram uma forte carga de desejo de dominação, revelada no intuito de que os dados matemáticos reservam para si de serem verdades incontestáveis. Basta lembrarmos-nos do exemplo de Descartes (2001), que considerava a geometria um modelo no qual se deveriam espelhar todas as tentativas de construir conhecimento. Ele afirma, em O Discurso do Método, que podemos confundir sonhos com realidade, mas quer nos sonhos, quer no acordar, jamais um quadrado, por exemplo, seria outra coisa que não um quadrado. O problema de se privilegiar unicamente a factualidade (cujo um dos grandes emblemas é a estatística) é que se perde de vista um componente fundamental da investigação científica: a abertura para alternativas, para as possibilidades. Além disso, as estatísticas, em seu escopo generalizante, não se prestam para mostrar uma dimensão que cada vez mais deve ser levada em conta num mundo aberto à alteridade, à diferença: a exceção, o detalhe.

A demonstração argumentativa, por sua vez, é erroneamente encarada como sinônimo de argumento de autoridade, levando a Academia a exigir dos pesquisadores que se tornem devedores de um suposto paraíso perdido, de uma origem ou fonte eterna dos discursos, retomando, ao infinito, trechos do pensamento de autores que os pesquisadores já firmados na área convencionam como sendo verdades apriorísticas, as quais os novatos teriam de reproduzir, submetendo-se. Nesse sentido, atribuem-se à demonstração argumentativa as mesmas características da factualidade: autoridade, ordem e freqüência, que, juntas, geram a sensação de incontestabilidade. O elemento factual não corresponde, como acreditaram os iluministas, a uma imagem especular perfeita do mundo. A factualidade é como uma teia, trabalhando para cercar por todos os lados o objeto de desejo da aranha; e faz isso ao combinar, numa receita tentadora, os ingredientes referentes ao argumento de autoridade, à freqüência ou repetição de resultados (focar a repetição implica ignorar detalhes) e à ordenação dos eventos numa máthesis (FOUCAULT, 1999) ou esquema do tipo causa-conseqüência [que como observa Durand (2002), não é a única plataforma que nos relaciona cognitivamente com o mundo. Ao lado da lógica silogística, caminha, com afinidades, o imaginário].

Na senda do factual, perde-se, porém, um componente que, como dirão Benjamin e Foucault, é fundamental na construção do conhecimento: a transgressão. Como lembra Kátia Muricy (1998), Benjamin aconselha que o pesquisador deva, a fim de evitar o risco de submeter a investigação científica à reprodução de verdades que sirvam à perpetuação de um determinado esquema de relações de poder, deslocar ou desterritorializar o pensamento dos autores, levando as citações a dialogarem com terras estrangeiras, não familiares. Tal conselho benjaminiano – relatado por Kátia Muricy (1998) – refere-se, sem utilizar o termo específico, ao que atualmente chamamos de interdisciplinaridade. O filósofo alemão não pleiteava uma mixórdia ou uma colcha de retalhos desconexos, como certos “pesquisadores” comodistas efetuam, mas sim o esforço necessário para que o conhecimento não se torne viciado. Tal atitude requer exercitar a complexidade, permitir- se discutir as convicções de fundo que habitam uma teoria (GOMES, 2003, p. 319), refletindo de forma crítica sobre seus pressupostos. É um ponto de vista que se aproxima da recomendação feita por Foucault (1972) para os que pretendem construir conhecimentos sem deixar que valores como originalidade e unidade, em vez de pressupostos que continuamente merecem discussão, convertam-se em dogmas a ser cegamente seguidos. A este respeito, o autor francês comenta o seguinte:


É preciso renunciar a todos esses temas, que têm por função garantir a infinita continuidade do discurso e sua secreta presença no jogo de uma ausência sempre reconduzida. Estar pronto para acolher cada momento do discurso em sua irrupção como acontecimento; nessa pontualidade em que aparece e nessa dispersão temporal que lhe permite ser repetido, sabido, esquecido, transformado, apagado até nos menores traços, escondido, bem longe de todos os olhares, na poeira dos livros. Não é preciso remeter o discurso à longínqua presença da origem; é preciso tratá-lo no jogo de sua instância (FOUCAULT, 1972, p. 36).

De acordo com Ginsburg, era comum entre pensadores, a exemplo de Aristóteles, fundamentar dois tipos de certezas. Um deles baseado em signos genéricos, não necessários (semeion); outro em signos de verdade necessária (tekmerion): “Na terminologia de Aristóteles, este último estava reservado para as conexões naturais e necessárias que permitem formular um verdadeiro e próprio syllogismos: se uma mulher tem os seios cheios de leite, é porque teve um filho” (apud GINSBURG, 2002, p. 56). Já os semeion refletem a tendência do pesquisador à generalização, baseada no ato de completar lacunas que a factualidade ou a empiria não conseguem abarcar. Esse gesto era praticado habitualmente por pesquisadores da Antiguidade, a exemplo de Lorenzo Valla e Tucídides, o qual “[...] vê no costume de portar armas, difundido entre os habitantes de regiões como a Lócrida e a Etiólia, uma prova de que, no passado, hábitos análogos estavam difundidos por toda parte” (GINSBURG, 2002, p. 56). Outro exemplo dado pelo escritor italiano refere-se a Le Gobien, que relata, com riqueza de nuances, uma revolta de indígenas nas Ilhas Marianas, sem nunca ter estado lá, apoiado em argumentos de defesa tecidos por outros autores, como Montaigne e Tácito, sobre o homem “selvagem”.

Ginsburg percebe que semeion e tekmerion não são realidades excludentes . como convencionalizou-se na cultura ocidental que, como vimos, tende a conferir ao tekmerion status superior no que se refere ao rigor científico. O tekmerion ou a prova (sinônimos para o autor) trabalharia em favor do que costumamos caracterizar como uma investigação que prima pela profundidade analítica. Nesse sentido, a prova seria uma informação profunda, por não deixar lacunas sem serem preenchidas por verdades de cunho factual ou empírico. Por outro lado, os semeion, em seu esforço de completar lacunas factuais com a argumentação ou retórica (nas palavras de Ginsburg), tendem a ser considerados como denotadores da superficialidade da pesquisa científica.

O valor que gira em torno dos termos superficial e profundo varia no decorrer da história das idéias. No Renascimento, por exemplo, a palavra superficial adquire um juízo de valor favorável, opondo-se ao conhecimento hermético ou profundo, que, quase instantaneamente, tendia a ser relacionado com discursos de cunho místico, combatidos pelo espírito racionalista que estava se forjando (a superficialidade como ideal será cultivada ainda mais fortemente no século XVIII pelos filósofos da Ilustração). Nota-se, portanto, que a prevalência do termo profundo como critério que valora positivamente a pesquisa científica se deve ao vestígio insistente de uma tendência de encarar como sendo bom aquilo que diz respeito à proximidade com a divindade e, conseqüentemente, a um afastamento da humanidade corrupta. Isso significa encarar a pesquisa bem feita como sendo algo dotado de um toque de hermetismo; um conhecimento cultivado por um circuito restrito de intelectuais que adquirem simbolicamente o status de sacerdotes-guardiões do fogo sagrado do saber. Esse ideário medieval foi mesclado ao ideário renascentista de que a verdade legítima no campo das ciências deve pautar-se na empiria. É uma síntese, que, apesar de seu pano de fundo altamente contraditório, persiste, alimentando o imaginário da Academia que acredita, embora não mais com tanta veemência como no século XVIII, que se relaciona imparcialmente, sem interferência da imaginação, com verdades “contidas” no mundo, escritas, como diria Francis Bacon, no livro da natureza.

Para Ginsburg, no entanto, semeion e tekmerion ou, em outras palavras, retórica e prova, mutuamente se pressupõem e trabalham reciprocamente em sua configuração. É impossível termos acesso ao passado de forma completa; mesmo a maneira como o historiador arregimenta as evidências e as lacunas que encontra pelo caminho requerem a interferência da retórica, da emoção e da suposição. Por outro lado, a própria retórica, ou a arte de tornar nossos argumentos convincentes ou demonstráveis, requer que o núcleo da nossa argumentação contenha a chamada prova, ou empiria. Conforme o nível de dosagem entre retórica e prova na construção do conhecimento, podemos contribuir para o avanço ou para a estagnação da pesquisa. Isso não significa que podemos de imediato inferir que a solução para os problemas dessa atividade humana está em perseguir um equilíbrio de ouro, pois, conforme as circunstâncias será produtivo o exagero, pendendo ou para o lado da retórica ou para o lado da prova. O critério que melhor tipificará o sucesso da combinação entre retórica e prova será o confronto aberto em que os partidários que tendem para a retórica e os que tendem para a prova, ao colocar em diálogo as limitações e imperfeições decorrentes de seu posicionamento e ao prestar atenção no que cada um desses campos tem a acrescentar para a emancipação do saber. Nesse diálogo, os pesquisadores devem ter em mente que a riqueza da pesquisa está mais no exercício do confronto do que no preenchimento efetivo das brechas teóricas que, como dirá Foucault, constituem não um distúrbio da formação dos discursos, mas sua característica principal:


A formação discursiva não é, pois, uma totalidade em desenvolvimento, tendo seu dinamismo próprio ou sua inércia particular, carregando consigo, em um discurso não formulado, o que ela diz ainda ou o que a contradiz no momento; não é uma rica e difícil germinação, é uma repartição de lacunas, de vazios, de ausências, de limites, de recortes (FOUCAULT, 1972, p. 149).

Ele dirá também que a ênfase dada, habitualmente, pela pesquisa, aos fatos – a verdades documentais – revela o impulso de instituir a unidade do conhecimento, controlando-o. O pensador não quer dizer com isso que devemos abolir a pesquisa documental: “Nada de mal-entendidos: é claro que desde que uma disciplina como a História existe, temo-nos servido de documentos” (FOUCAULT, 1972, p. 13). O problema está em deixar de observar que o “[...] documento não é o feliz instrumento de uma história que seria nela mesma, e de pleno direito, memória; a história é, para uma sociedade, certa maneira de dar estatuto de elaboração à massa documental de que ela não se separa” (FOUCAULT, 1972, p. 13). Isso é outra forma de dizer que a pesquisa está às voltas com a tensão entre retórica e prova, a que se refere Ginsburg. Compreender o modo como se dá estatuto à massa documental envolvida na pesquisa é determinar, nas palavras de Foucault, como se relacionam dialeticamente as diferentes séries, quadros ou espaços de problematização dos documentos. Em outros termos, ele quer dizer que o pesquisador deve focar a tensão entre as distintas formas, “recortes, os desníveis, os deslocamentos, as especificidades cronológicas, as formas singulares de permanência” (FOUCAULT, 1972, p. 18) do conhecimento. Isto significa estudar a gradiente de forças envolvido nas estabilizações/ desestabilizações das arenas do conhecimento, a exemplo da economia, “[...] ao lado das instituições e ao lado delas ainda as das ciências, das religiões ou das literaturas [...] Uma descrição global cinge todos os fenômenos em torno de um centro único – princípio, significação, espírito, visão do mundo, forma de conjunto; uma história geral desdobraria, ao contrário, o espaço de uma dispersão” (FOUCAULT, 1972, p. 18). No entanto, o espaço da dispersão não despreza a esfera da unidade discursiva. Dirá Foucault:


Essas formas prévias de continuidade, todas essas sínteses que não problematizamos e que deixamos valer de pleno direito, é preciso, pois, mantê-las em suspenso. Não, certamente, recusá-las definitivamente, mas sacudir a quietude com a qual a aceitamos; mostrar que elas não se justificam por si mesmas, que elas são sempre o efeito de uma construção de que se trata de conhecer as regras e de controlar as justificações; definir em quais condições e em vista de que análises algumas são legítimas; indicar as que, de qualquer forma, não podem mais ser admitidas (1972, p. 37).

A recíproca também é verdadeira. Formas prévias de descontinuidade, ou a perda de foco decorrente da necessidade de colocar em confronto dialético as diversas séries ou quadros (a palavra campo talvez soe mais familiar) de construção do conhecimento, também devem ser sacudidas, procurando-se investigar se essa interdisciplinaridade justifica-se a si mesma e que preconceitos alimenta ou que nuances do conhecimento pode camuflar. Não se deve escantear o que a busca pela unidade discursiva, em seu impulso de esgotar o que uma determinada face do conhecimento, tem a mostrar. Isso pode ajudar a trazer à tona faces inesperadas na atividade de pesquisa.

Freud soube explorar a riqueza gerada pelo confronto entre a unidade discursiva – e sua tendência de preservar o conhecimento dentro de certos limites – e a dispersão dos discursos – em seu impulso de organizar o conhecimento em rede, impedindo que ele crie raízes profundas em quaisquer disciplinas. Podemos dizer que ele soube jogar com a profundidade e a superficialidade na elaboração de suas pesquisas, fazendo do caráter superficial da interdisciplinaridade, em seu nomadismo, uma superficialidade profunda. Indiretamente, a estratégia de pesquisa freudiana nos alerta que o peso excessivo dado ao elemento da prova ou do argumento de autoridade em detrimento da retórica, da argumentação, pode travar a pesquisa ou resumi-la à retomada inócua de dados. Sem serem confrontados com perspectivas teóricas de outros campos, esses dados acabam por revelar uma profundidade superficial. A ausência de timidez do pai da psicanálise em oscilar entre o superficial e o profundo responde pelos avanços representados pelo arsenal teórico da Psicanálise. Isso não significa que Freud constituiu uma reflexão perfeita, mas que, explorando suas limitações, apontou caminhos e apresentou soluções que, mais do que a importância que tiveram por si mesmas, destacam-se pelo estímulo que representaram à revisão de paradigmas nos diversos campos do pensamento humano, revisão essa que continua em processo atualmente.

Conforme o relato do psicólogo Durval Marcondes contido no prefácio às Cinco Lições de Psicanálise de Freud (1970), o pensador alemão foi realmente um compulsivo pela averiguação empírica dos pressupostos de sua teoria da psicanálise. “Desde o começo de sua carreira profissional, o amor à certeza científica fêlo prejudicar deliberadamente a clínica em início pela tenacidade em pesquisar em seus doentes o exato determinismo dos sintomas. Sua obra fundamenta-se na mais demorada e paciente observação dos fatos”. Marcondes relata que Freud ficou mais de quarenta anos de sua vida, realizando até onze análises de uma hora cada uma, diariamente, a fim de provar seus pressupostos. Essa tenacidade revela-se também na grande espera para publicar seus textos, espera essa que, em alguns casos, chegava a cinco anos.

Mas, ao lado da obstinação pela pertinácia empírica de suas pesquisas, Freud também cultivou uma relação especial com a demonstração argumentativa (retórica), destrinchando, de um sonho infantil de Leonardo Da Vinci, conceitos fundamentais da psicanálise, como a idéia de narcisismo e o complexo de castração, como já observamos. Freud lançou um olhar diferente sobre informações factuais que passariam como meros registros, a exemplo de um certificado de propriedade dos pais do artista, de relatos de fofocas sobre a suposta homossexualidade de Leonardo e de notas sobre os gastos com o funeral de uma mulher que o pintor acolhera em sua casa. Tais elementos empíricos foram arregimentados, com auxílio de um poder argumentativo ou retórico surpreendente, no interior de uma complexa trama da qual também participam informações sobre o modo como Leonardo se relacionava com sua arte. No que se refere ao componente da factualidade ou da prova, a investigação de Freud sobre a homossexualidade de Da Vinci mostra pobreza. Ele mesmo dirá, referindo-se ao estudo de Leonardo que quando “[...] tal estudo não fornece resultados indubitáveis […] a culpa não está nos métodos falhos e inadequados da psicanálise, mas na incerteza e na natureza fragmentária do material com ele relacionado, e que a tradição nos legou”.

Ele continua: “Portanto, somente o autor deverá ser considerado responsável pelo fracasso, por ter obrigado a psicanálise a exprimir sua opinião abalizada, apoiando-se em material tão insuficiente” (FREUD, 1970, p. 122).

Mas a demonstração argumentativa que o pensador alicerça confere à escassez factual uma incrível fertilidade. Essa demonstração argumentativa (GOMES, 2003) ou retórica (GINSBURG, 2002), ou, ainda, a maneira como é elaborada a massa documental (FOUCAULT, 1972), não significa o abandono da informação empírica, mas sim uma maneira de lidar com as lacunas dela. Não há, no entanto, como efetuar uma demonstração argumentativa sem se render parcialmente à superficialidade característica da interdisciplinaridade. Ao preencher as lacunas factuais sobre a vida de Leonardo Da Vinci, Freud realizou um circuito interdisciplinar entre campos como a religião (dogmas cristãos aos quais teve acesso o menino Da Vinci), mitologia (mito de Narciso que serviu de base ao conceito de narcisismo e mito egípcio com base no qual interpretou um sonho de Leonardo quando pequeno com um abutre, relacionando esse sonho ao complexo de castração pelo qual passaria qualquer criança), arte (análise da pintura do artista), biologia (estudo de fenômenos da sexualidade infantil), para mencionarmos alguns. A partir de sobrevôo ou vôo superficial sobre áreas diversas, Freud teoriza sobre um dos tipos de homossexualidade, da qual seria o artista italiano um exemplo.

Freud empregou a demonstração argumentativa lastreada por uma superficialidade de conhecimento estruturado em rede, constituída por rasos mergulhos em diversos campos do conhecimento (admitidos oficialmente pela Academia ou não. Esse teria sido um dos motivos pelos quais ele não foi, de início, bem acolhido pelos acadêmicos europeus, como lembra Marcondes). Um outro caso por meio do qual podemos ilustrar a opção de Freud pela superficialidade, como procedimento de pesquisa, é o uso da hipnose para fundamentar os estudos do fenômeno da histeria. Mesmo não conhecendo em profundidade os fundamentos científicos da hipnose e desconfiando de seu fundo místico, o pensador a utilizou como ferramenta para ter acesso aos traumas inconscientes e, assim, poder relacioná-los aos sintomas da neurose. Freud tinha em mente que o uso da hipnose seria temporário, mas não se rogou em usá-la, mesmo duvidando de sua cientificidade, a fim de tornar possível a ampliação de sua investigação, e o progresso de suas pesquisas.

Mas, apesar de optar pelo caminho superficial da interdisciplinaridade, da retórica argumentativa, Freud não desprezou a profundidade e a constância, revisitando seus pressupostos nas sessões de psicanálise que arduamente realizava e testando os limites de seu pensamento. Essa combinação fez com que ele avançasse os estudos das chamadas Humanidades e também da área da Saúde, não se limitando a repetir o pensamento de autores que o ranço acadêmico acaba por consolidar; não caindo na armadilha da profundidade superficial. Tal receita fez também com que a aparente superficialidade de sua estratégia interdisciplinar, escorada em poucos fatos, a priori, mas numa demonstração argumentativa de rigor e no esforço posterior de comprovação empírica, tornasse seu trabalho dotado do que chamo de superficialidade profunda. Essa é uma boa estratégia porque traz implicitamente um confronto entre as alternativas da superficialidade e da profundidade. Acredito ser nessa oposição dialética que se encontra a mais fértil, embora não a mais tranqüila, maneira de pesquisar. Nem a profundidade, nem a superficialidade são boas ou más em si mesmas; ruim é a inércia gerada quando se permanece em torno de uma destas esferas.


2 Vantagens e desvantagens da superficialidade e da profundidade

É preciso, nesse ponto, destacar que não é intenção, neste artigo, apresentar um manual de regras de pesquisa ou uma combinação perfeita entre os elementos da disciplinaridade e da interdisciplinaridade, mas sim analisar as possibilidades de pesquisa envolvidas na dialética entre esses dois momentos.

A permanência do pesquisador numa região circunscrita, recorrendo a um determinado grupo de autores considerados familiares a um específico campo de estudo, ou valendo-se de dados estatísticos ou outras formas ligadas à noção de prova ou empiria (coleta de respostas a questionários do tipo sim ou não, por exemplo), traz como uma de suas vantagens a possibilidade de verificar ou refutar, de imediato, a adequação de uma determinada interpretação à sociedade. Um questionário, por exemplo, pode detectar o grau de inveja entre a população, representada pela amostra estatística que está sendo estudada. A vantagem de podermos ter uma confirmação imediata nos afasta, porém, de uma percepção com nível de detalhamento. O que prevalece é uma informação de tipo genérico. Já a profundidade obtida quando se estuda uma determinada temática a partir da análise do pensamento de autores convencionalmente relacionados a uma disciplina traz como vantagem o fortalecimento de um ponto de vista, mas traz como desvantagem o fato de o pesquisador correr o risco apontado por Foucault de permanecer andando em círculos em torno de uma mesma interpretação. No ensaio sobre Leonardo, Freud analisa os limites da investigação factual na psicanálise, e o que ele diz pode ser adaptado para a pesquisa nas ciências humanas como um todo:


Ainda que o material histórico de que dispomos fosse muito abundante e os mecanismos psíquicos [ou de outros domínios, a exemplo dos mecanismos sociais, culturais, entre outros] pudessem ser usados com a máxima segurança, existem dois pontos importantes onde uma pesquisa psicanalítica não nos consegue explicar por que razão é tão inevitável que a personagem estudada [ou o fenômeno estudado] tenha seguido exatamente essa direção e não outra qualquer (FREUD, 1970, p. 122, interpolações grifadas pelo autor).

Por outro lado, a superficialidade decorrente da modalidade interdisciplinar de investigação coloca o pesquisador em risco no que se refere à possibilidade de este se ver às voltas com as lacunas que habitam a construção de qualquer teoria. No esquema da profundidade, as lacunas tendem a ser esquecidas, porque nosso pensamento, ao circular dentro de um campo do conhecimento (ou, melhor dizendo, ao tentar permanecer restrito a um determinado campo), acaba por escamotear as falhas e contradições de seu pensamento. A vantagem da superficialidade é que ela revela uma face da verdade que, por mais que busquemos evitar, é fundamental para colocar à mostra o esquema social de disputas envolvido na construção do conhecimento. A face da verdade a que me refiro é a negatividade que, segundo Hegel (apud MARCUSE, 1978), deveria ser o ponto de partida de qualquer tentativa de chegarmos ao conhecimento racional. Para o filósofo, a realidade que não coloca a si mesma em dúvida não passa de aparência.

A profundidade, no entanto, se mostra um antídoto contra o exagero da interdisciplinaridade, ao oferecer chances, por meio da recorrência de pressupostos, de contribuir para a consolidação de posicionamentos éticos orientadores da formação de um determinado campo (no que se refere ao conhecimento estatístico, a sua aparente neutralidade acaba por afastar-se da vantagem sobre a qual estamos falando). Já no que se refere à interdisciplinaridade, o seu exagero pode dificultar que o pesquisador enxergue os valores que estão em jogo quando ele estabelece uma determinada rede de relacionamentos entre as teorias dos diferentes campos. Certa dosagem de “desleixo”, num primeiro momento, com o elemento da empiria, pode estimular a participação da retórica ou da demonstração argumentativa, promovendo a correção dos excessos do logicismo a que tende à pesquisa.

Isso promove o trânsito do pesquisador entre dimensões importantes do conhecimento que dialogam com a prova (em seu sentido estrito), a exemplo do conhecimento literário e artístico. Habermas retoma os pensamentos de Schiller e Marcuse, para falar sobre um erro – reproduzido em particular na atividade de pesquisa – mas que, segundo eles, se estende a toda a sociedade. Trata-se da crença de que a sociedade é fruto exclusivamente da consciência (daí os elementos ligados à prova serem os mais legitimados pelos pesquisadores, em detrimento da retórica). Porém, visto “[...] que a sociedade não se reproduz apenas na consciência dos homens, mas também em seus sentidos, é preciso que a emancipação da consciência se enraíze na emancipação dos sentidos – é preciso que ‘seja dissolvida a intimidade repressiva com o mundo dos objetos dados’” (MARCUSE apud HABERMAS,2000, p. 71). Dirá ainda o filósofo que a racionalidade é, antes de tudo, a disposição dos sujeitos capazes de falar e de agir para adquirir e aplicar um saber falível, um saber que questiona os limites do Logos, “[...] incluindo a dimensão moral assim como a estético-expressiva” (HABERMAS, 2000, p. 437). “A razão comunicativa encontra seus critérios nos procedimentos argumentativos de desempenho, diretos ou indiretos, das pretensões de verdade proposicional, justeza normativa, veracidade subjetiva e adequação estética” (HABERMAS, 2000, p. 437). Enquanto a razão centrada no sujeito se pauta por ideais como a verdade e o êxito, a razão comunicativa orienta-se por pretensões de validade assentadas no reconhecimento intersubjetivo (HABERMAS, 2000, p. 437). Podemos dizer que falta ao espaço acadêmico ajustar-se, criando um ambiente favorável a esse reconhecimento intersubjetivo de que fala Habermas. Normalmente o debate tem se configurado como uma disputa entre os partidários da disciplinaridade e os da interdisciplinaridade, ou como a tentativa, por parte de ambos, de demonstrarem que representam uma espécie de panacéia. Falta-lhes reconhecer sua falibilidade e como podem, em sua especificidade, colaborar uns com os outros, apontando reciprocamente suas fraquezas e, do mesmo modo, superando seus limites. Nesse caso, a falibilidade de ambos, em diálogo, é mais produtiva para a pesquisa do que uma suposta totalidade de conhecimento perseguida, sob diferentes nuances, por esses dois grupos.

Mais lucrativo para a pesquisa é adotar, no que se refere à relação entre a superficialidade e a profundidade, o esquema circular adotado pelo pensador Richard Johnson (1999). Na concepção do autor, a construção do conhecimento deve efetuar um movimento circular, que poderia ser alegorizado pelo ciclo da água na natureza. O conhecimento deve circular entre a dimensão teórica (que tende à generalização e à abstração, sem as quais o conhecimento não poderia, minimante, alicerçar-se) e a dimensão prática (que tende à contestação dos elementos da esfera teórica e à exposição de detalhes, que abalam fundamentos e certezas traçados pelos esquemas lógicos). Em se fazendo uma adaptação, a fim de utilizar este esquema para relacionar a superficialidade e a profundidade, podemos chegar a uma conclusão semelhante. Isso se dá principalmente porque a permanência do pesquisador num determinado campo, ou o seu ingresso na interdisciplinaridade, se deve à tensão, cada vez mais “palpável”, entre as esferas teórica e prática, entre Logos e mundo da vida – o qual, segundo Habermas (2000,p.426), “[...] constitui, às costas dos participantes da interação, o contexto inquestionado do processo de compreensão” – que também tem papel fundamental no decorrer da realização da pesquisa.


3 Considerações finais

Provavelmente, espera-se, neste momento, que eu dê sinais de qual partido estou mais próximo: se da disciplinaridade ou da interdisciplinaridade. Confesso não ter condições de tomar esta decisão. Portanto, vou me limitar a dizer meus sentimentos com relação a essas duas tendências.

Admiro na disciplinaridade – em sua busca pelo conhecimento profundo – a aura de sacrifício que a envolve. Cientistas como Giordano Bruno e Miguel de Servet perderam a vida para que as fronteiras entre a formação da fé e a do conhecimento (primeira expressão da utopia disciplinar) pudessem ser delineadas. Aceitaram o desafio não de encontrar a verdade enquanto causa última de tudo, mas enquanto enfrentamento do peso asfixiante de uma tradição que subordinava completamente o ser humano à ação de uma natureza tida como insondável e incontrolável. Contribuíram para transferir a autoridade de definição dos parâmetros lógicos de organização do mundo da Igreja para o homem comum. Com isso, abalaram o monopólio eclesiástico dos mistérios. Nesse sentido, a ordenação disciplinar do mundo, puxada pela matemática e pela física, constitui-se como fonte de resistência à ignorância medieval. Entenda-se ignorância não como significando ausência de saber, mas sim como postura totalitarista e desvirtuadora do papel que o mistério e a imaginação possuem na arquitetura do conhecimento.

O esforço disciplinar, porém, ao traçar limites entre fé/imaginação/ mistério e lógica/empirismo, não se preocupou em estimular a interação e o conflito franco e aberto entre esses dois universos. Na verdade, substituiu-se o totalitarismo da fé e do mistério pelo totalitarismo da evidência.

Acredito que a valorização contemporânea da interdisciplinaridade esteja relacionada à tentativa de viabilizar o diálogo entre as duas dimensões, que a ciência moderna firmemente tentou apartar. A interdisciplinaridade é a dose de imponderável, de mistério inoculado na exatidão e na evidência que, quando exacerbados, reduzem o ser humano a dados estatísticos ou a aspectos de mapas e diagramas, ou, ainda, a quadros comportamentais definidos pelas regiões do cérebro. A interdisciplinaridade contrapõe ao abuso metonímico do cientificismo a expansão metafórica das fronteiras do ser. Não por acaso, o caráter interdisciplinar é mais polêmico quando envolve a aproximação de áreas tradicionalmente encaradas como rivais. Justamente nesses confrontos insólitos, Perséfone, a deusa que vaga entre as regiões subterrâneas e a superfície, atua como agente da síntese proveniente da dialética entre o componente do mistério (Hermes) e o componente da evidência (Logos). Dessa forma, são expostas as fragilidades e perversidades tanto do mistério quanto da evidência, mas também se promove a expansão da consciência e o desafio de enfrentar a face dialética do preconceito: vício a ser superado e ponto de partida inevitável da reflexão de seres inseridos que somos em diferentes contextos, a exemplo do espiritual, do social e do histórico.

Minha avaliação é de que a disciplinaridade ampara-se num esquema de tempo cronológico, entendido como linha na qual os acontecimentos se situam em termos de antecedência e conseqüência. O impulso do tempo cronológico, na cultura moderna, teve inegável papel na emancipação humana. Trata-se de uma temporalidade alicerçada no planejamento autônomo, pautado num passado que pode ser revisado e num futuro em que o índice de indeterminação é reduzido pela potencialidade da técnica em anular imprevistos. Cronos é o tipo de tempo ligado ao que Giddens (1991) denomina reflexividade. O problema é a sociedade validar exclusivamente a temporalidade cronológica em detrimento de outras como o tempo glacial. Este insere nossa identidade num todo maior, no qual são co-dependentes natureza e gênero humano, num movimento em que os indivíduos não são “[...] a unidade de experiência mais relevante” (CASTELLS, 1999, p. 158). A adjetivação glacial refere-se a uma imagem do tempo da ordem das “eras”, algo que supera o que o ser humano é capaz de discernir exclusivamente por meio do intelecto.

Acredito que o tempo cronológico, no seu caráter controlador (não necessariamente algo ruim) esteja correlacionado à disciplinaridade, a qual, por sua vez, “[...] é correlato indispensável à função fundadora do sujeito [acrescentaria eu: sujeito do tipo iluminista]” (FOUCAULT, 1972, p.21). Já o tempo glacial, na minha opinião, instaura uma subjetividade holística, pautada pela idéia de pertencermos a um eu cosmológico (CASTELLS, 1999, p. 158). O tempo glacial remete à interdisciplinaridade.

Mas, o ponto ao qual desejo chegar é sobre a confusão que se tem feito entre a interdisciplinaridade (com seu caráter holístico), e a junção de saberes fragmentários com fins a um inócuo esgotamento das possibilidades ou pontos de vista em torno da análise de um determinado objeto. Em nome de uma suposta interdisciplinaridade, intensificam-se os mecanismos de controle da disciplinaridade. Isso lança sobre o pesquisador a insana cobrança de que ele consiga justapor, a cada instante de sua reflexão, universos completos de saber. Nega-se, assim, um dos mais marcantes atributos da interdisciplinaridade: o reconhecimento das lacunas que constituem o saber e o manejo criativo dessas lacunas a fim de forjar novas possibilidades de conhecimento. Essa atitude megalomaníaca que pode provir da disciplinaridade termina por criar novos pesquisadores que, antes de tentar, dão-se por vencidos em sua tarefa de estruturar o conhecimento. No pior dos casos, estimula-se a justaposição indiscriminada de citações. No caso de pesquisadores cuja “autoridade” já é reconhecida, a utilização de referências a autores de campos diferentes atua no papel de sentinelas vigilantes de seu ego “impenetrável”. Admitir que o fazer científico é habitado pelo conflito entre os eus iluminista e cosmológico – e refletir sobre os aspectos e limites desses eus – já é um passo fundamental para um novo entendimento, sob a égide de Perséfone, do que vem a significar o progresso da ciência.


Superficial depth and deep superficiality: The quandary of human sciences between Disciplinary and Interdisciplinary research
ABSTRACT
This article has on purpose to discuss the necessity of laying back the fighting between disciplinarity and interdisciplinarity, as if they were in an irreconcilable opposition. We try to demonstrate that wealth of Human Sciences increases by an open confront between these two research’s modalities in order to fulfill each other blanks. By means of this analysis, we give a new meaning for the terms superficiality and depth, trying to overcome the ancient opposition that considers the depth as a good thing in opposition to the superficial character. By doing that, we are reviewing, helped by Carlo Ginsburg’s theory, the opposition between rhetoric an proof, or, in other terms, between factuality and argumentative demonstration. Through the confrontation of disciplinarity and interdisciplinarity limits, we try to point new scientific directions, showing solutions capable on stimulating a frequent paradigmatic revision on sciences.
KEYWORDS: Disciplinarity. Interdisciplinarity. Rhetoric. Proof.


Profundidad superficial y superficialidad profunda: el dilema de la investigación de las ciencias humanas entre la disciplinaridad y la interdisciplinaridad
RESUMEN
El objetivo de este artículo es discutir la necesidad para rever el conflicto entre la disciplinaridad y la interdisciplinaridad no más como si fueran opuestos irreconciliables. Intentamos demostrar que las ciencias humanas crecen con la confrontación abierta entre estas maneras de investigación, tenendo en mira llenar los vacios de ambas. Por medio de este análisis, buscamos nuevo significado para los términos superficialidad y profundidad, intentando sobrepasar la vieja oposición que considera profundidad como buena cosa en la oposición al carácter superficial. Al hacer esto, miramos de otra manera, con la ayuda de la teoría de Carlo Ginsburg, la oposición entre el retórico y la prueba, o, en otros términos, entre la factualidad y la demostración argumentativa. Con la confrontación tanto de los límites de la disciplinaridad cuánto de la interdisciplinaridad, intentamos señalar nuevas direcciones científicas, presentando soluciones capazes de estimular una revisión frecuente de los paradigmas de las ciencias.
PALABRAS CLAVE: Disciplinaridad. Interdisciplinaridad. Retorica. Prueba.


Referências

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Cláudio Clécio Vidal Eufrausino
Mestre em Comunicação, mídia e cultura/UFPE
Jornalista
Eleito um dos ganhadores do prêmio Jovens Produtores de Mídia /Unesco, 2006
E-mail:cleciopegasus@yahoo.com.br
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