A representação da morte nas capas das revistas semanais Veja e IstoÉ


Antônio Aílton Ferreira de Cerqueira

1 Introdução
2 Imagem, morte e discursos sociais
3 As capas das revistas e os dizeres sobre a morte
3.1 Os Discursos sobre a morte
4 Considerações finais
Notas
Referências

RESUMO
Utilizando-se, principalmente, de conceitos da Teoria dos Discursos Sociais, este artigo investiga a representação da morte nas capas das revistas semanais Veja e IstoÉ, no período de julho de 2004 a julho de 2005. Partindo do princípio de que as capas são espaços privilegiados de produção de sentidos, analisam-se as estratégias discursivas utilizadas pelas revistas na constituição do conceito morte, tema básico para a humanidade.
PALAVRAS-CHAVE: Imagem. Morte. Revistas. Análise do discurso.


1 Introdução

Em linhas gerais, interessa a essa análise a tematização da morte construída pelas capas das revistas semanais Veja e IstoÉ no período de julho de 2004 a julho de 2005. Como foram utilizadas as imagens com a temática morte na construção desses discursos midiáticos? Que sentidos são acionados pelos enunciados verbais na organização do discurso sobre a morte na contemporaneidade?

Para responder a essas questões, o artigo apresenta, inicialmente, uma reflexão teórica sobre a imagem vista como discurso social e sobre a morte como fenômeno discursivo. Em seguida, expõe um conjunto de reflexões sobre o modo de evidenciar a morte, utilizado pelas revistas Veja e IstoÉ.

Funciona como principal referencial teórico para essas análises a teoria dos discursos sociais, que investiga os fenômenos culturais como fenômenos de comunicação. Pinto (1997, 1999), Magalhães (2003) e Véron(2005), por exemplo, são autores que discutem o caráter enunciativo e discursivo das imagens, especialmente as imagens midiáticas. Além desses autores, fundamentam esse artigo o pensamento de Sontag (2003) e Barthes (1990), principalmente em relação aos estudos sobre como imagens fotográficas de dor e da guerra são apresentadas pelos meios de comunicação.

A escolha das duas revistas, Veja e IstoÉ, deve-se às constatações feitas por Dorneles (2004). Segundo o autor, a partir dos anos 1970, a imagem vem assumindo o status de suporte privilegiado e predominante do jornalismo praticado pelas revistas semanais de informação. Com base em uma pesquisa feita em 2003, o autor garante que Veja , por exemplo, destina 60,35% de sua superfície gráfica à publicação de imagens fotográficas. Já, em IstoÉ, 57% da superfície gráfica são destinados a imagens fotográficas. Elas seriam assim - das revistas semanais de informação – as que mais destinariam espaço às fotografias.


2 Imagem, morte e discursos sociais

Segundo Morin, citado por Kovacs (2002), é nas atitudes e crenças diante da morte que o homem exprime o que a vida tem de mais fundamental. A sociedade, como a conhecemos, só existe em virtude da morte com a morte e na morte. Prova disso é o fato de que, freqüentemente, a morte assume papel principal em diversas manifestações artísticas.

Em relação à imagem, as máscaras mortuárias exemplificam bem essa aproximação da arte com a morte. Já no século XVIII, musas, mães e crianças eram retratadas em momentos fúnebres. Além disso, um breve olhar sobre a História da Arte revela que grandes nomes como Claude Monet e Edward Munch[1], por exemplo, têm em seus trabalhos imagens de morte.

Com o surgimento da fotografia, o fascínio pela morte não declinou. Sontag (2003, p. 23) defende, por exemplo, que:


Como uma imagem produzida por uma câmera é, literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, as fotos superavam qualquer pintura como lembrança do passado desaparecido e dos entes queridos que se foram.

As guerras existentes na primeira metade do século XX exemplificam, de acordo com Sontag (2003), outra situação: graças às fotografias, ampliou-se a possibilidade de ser um espectador de calamidades ocorridas em outros países. Às fotos coube uma autoridade maior do que qualquer relato oral para transmitir os horrores da produção de morte em massa, especialmente na Segunda Guerra Mundial.

Justificando essa valorização da fotografia, Sontag (2003, p. 23) acrescenta que:


O fluxo incessante de imagens (televisão, vídeo, cinema) constitui o nosso meio circundante, mas quando se trata de recordar, a fotografia fere mais fundo. A memória congela o quadro; sua unidade básica é a imagem isolada. Numa era sobrecarregada de informações, a fotografia oferece um modo rápido de apreender algo e uma forma compacta de memorizá-lo.

Como decorrência dessa afirmação, neste artigo, busca-se reforçar a tese de que encarar discurso, exclusivamente, como atividade verbal e oral é um engano grave. Aspectos não-verbais da linguagem, especificamente as imagens, são objetos de consumo simbólico e, conseqüentemente, geradores de sentidos.

Santaella e Noth (1998), ao falar sobre a fotografia, por exemplo, condenam o fato de se valorizar no estudo da fotografia apenas a iconicidade – a foto como uma espécie de cópia do real. Nesse tipo de análise, dizem os autores, perde-se a noção de que a imagem é uma construção repleta de valores culturais. As fotografias em um álbum de família ou na capa de uma revista constituem re(a)presentam o real, reconstroem e ressignificam situações ou indivíduos.

Para Pinto (1999, p. 24), as imagens – assim como outros tipos de discursos sociais – “[...] têm papel fundamental na reprodução, manutenção ou transformação das representações que as pessoas fazem e das relações e identidades com que se definem uma sociedade”. Nessa perspectiva, o autor defende que a imagem, como qualquer outro discurso, seria “[...] sempre um tecido de vozes ou citações, cuja autoria fica marcada ou não, vindas de outros textos preexistentes, contemporâneos ou do passado.” (PINTO, 1999, p. 27)

Ampliando esse raciocínio, é fundamental acrescentar uma tipologia das imagens fotográficas. Verón (2005) apresenta quatro maneiras de a mídia retratar a fotografia. São elas: a foto testemunhal, a foto construída, a retórica das paixões e a fotografia categorial.

A foto testemunhal é uma das modalidades mais tradicionais do fotojornalismo. Tomada no momento do acontecimento, esta categoria transmite a idéia de que “isso aconteceu assim”. A foto construída (ou pose) é aquela em que os personagens, conscientes de que estão sendo fotografados, agem de forma harmônica com o fotógrafo e constituem um ato através do qual o personagem retratado simboliza um determinado dizer do enunciador midiático (PINTO, 1999). Sorrir ou piscar para a câmera, por exemplo, são atos ilustrativos dessa última categoria. Na retórica das paixões, privilegia-se a qualificação de um evento ou acontecimento. Por último, a fotografia categorial é uma foto conceitual. Nela a imagem aparece como um fundo semântico genérico. “O leitor não reconhece seu problema, mas o divide com outros indivíduos pertencentes a sua mesma categoria sócio-profissional” (LOPES, 1998, p.65).


3 As capas das revistas e os dizeres sobre a morte

Veja e IstoÉ são veículos de comunicação que divulgam informações, comentários e imagens gráficas referentes ao que acontece na cidade, no país e no mundo, de interesse para a vida dos indivíduos e da comunidade. As revistas, de acordo com Fausto Neto (1991, p. 19), pontuam e organizam, de acordo com pedagogias próprias, “[...] as maneiras pelas quais a recepção deve olhar aquilo [...] que é remetido pela revista. Neste caso a revista é a referência, e as ‘janelas’ se abrem a partir dela”.

Nesta investigação sobre a tematização da morte em revistas, optou-se pelas capas, por elas serem espaços semanticamente privilegiados, verdadeiros atrativos para os leitores. Das capas, da qualidade do material visual e textual depende em parte a aquisição/aceitação do produto midiático revista. De acordo com Magalhães (2003, p.63):


As capas das revistas, como espaços de materialidades discursivas, são lugares em que se encenam e insinuam atos e fatos imagísticos, rituais de sedução, persuasão e informatividades, segundo pontos de vista, maneiras de perceber (e fazer ver/ ler) plástica e lingüisticamente o mundo.

Verdadeiros cartões de boas-vindas para o leitor, elas possuem em sua essência o que Pinto (1999) chama de mostrar, interagir e seduzir. Mostram ao construir o referente, o mundo do qual seu texto fala; interagem ao estabelecer vínculos socioculturais com o interlocutor; e seduzem ao distribuir afetos positivos e negativos cuja hegemonia reconhece ou quer ver reconhecida.

Não se pode esquecer também que as fotografias das revistas semanais sobre a temática morte (ou qualquer outra) não devem ser entendidas como uma manifestação da objetividade jornalística. Na verdade, as imagens são suportes de sentidos e opiniões, os quais resultam de um jogo de escolhas enunciativas. De acordo com Magalhães (2003, p. 79):


Todo signo que está na capa da revista foi intencionalmente colocado a fim de transparecer uma idéia ou de conduzir a uma determinada leitura do fato tratado. As imagens, principais objetos de estudo desse artigo, devem ser encaradas como objetos de linguagem. Ao encará-las como um discurso da atualidade, reconhecemo-las como um produto cultural, o qual não é neutro, mas dotado de sentidos.

A escolha das cores e as perspectivas selecionadas, por exemplo, são elementos que geram significações distintas, definem posições enunciativas e contribuem para que a capa não seja apenas uma vitrine noticiosa, mas um privilegiado espaço de enunciação.


3.1 Os Discursos sobre a morte

Após a coleta das imagens, optou-se por classificá-las em três grupos (A, B e C), o que tornou possível a interpretação das imagens do corpus. Evidentemente, a diversidade de imagens identificadas origina discursos heterogêneos sobre a morte; mesmo assim, a partir de particularidades destas, foi possível fazer afirmações sobre o que diz respeito às estratégias de enunciação.

O grupo A, mais freqüente no período analisado, é intitulado A MORTE COMO TRAGÉDIA. São imagens que buscam narrar a morte como resultado de acontecimentos como desastres naturais e ataques de grupos terroristas.

O segundo grupo, B, tem como título A PRESENÇA DOS MORTOS. É formado por imagens fotográficas que remetem o leitor a uma continuidade da vida após a morte. São relatos de comunicação entre vivos e mortos e a influência dos mortos sobre o comportamento dos vivos. Mesmo que simbolicamente, as imagens mostram uma vitória do homem sobre a morte.

Já o grupo C, assim como o anterior, é menos freqüente no período. Apresenta imagens agrupadas sobre o título DIANTE DA PROXIMIDADE DA MORTE. Com um forte apelo subjetivo, as imagens desse grupo não apenas funcionam como elemento referencial; são, em essência, elementos de convencimento do leitor.

GRUPO A: A MORTE COMO TRAGÉDIA

A princípio constata-se que, durante o período analisado, a utilização da cor preta é fato recorrente nas imagens que constituem esse grupo. Segundo Kovacs (2002), essa associação entre o preto e a morte é uma herança do paganismo e, no princípio, não estava relacionada à piedade ou forma de demonstrar tristeza. Era, de fato, uma forma de expressar medo; o preto funcionava como um disfarce para que o fantasma do morto não reconhecesse o vivo e, assim, não o assombrasse.

O uso de fotos testemunhais também é outra estratégia discursiva recorrente. Elas estão presentes em duas edições de Veja : a de 8 de setembro de 2004 (Figura 1) e a de 5 de janeiro de 2005 (Figura 2). Nelas, observa-se que a imagem é resultante da utilização de recursos pós-fotográficos. Não é possível ao leitor perceber outros detalhes das cenas, pois estes foram omitidos através da edição de imagens. São imagens ampliadas de uma mãe e de um pai sofrendo com a morte de seus filhos.

Na Figura 1, há a imagem de uma mãe agachada acariciando o rosto da filha. A criança é uma das mais de trezentas vítimas de um ataque terrorista praticado por chechenos a uma escola na cidade de Beslan, norte da Rússia. A imagem tem a ver, intertextualmente, com a Pietá, escultura do italiano Michelangelo, que representa o Cristo, morto, nos braços da Virgem Maria.

Figura 1

A capa de Veja mostra uma mãe que contempla a filha morta, sem lágrimas ou gritos, mas com um gesto de amparo e conforto. Da criança, mostra-se um rosto desfigurado. Apesar das leituras de imagens serem distintas, nesta está eternizada a intensidade do sofrer, estão representadas aquilo que os psicólogos chamam de a realidade da perda e a esperança de um reencontro (KOVACS, 2002).

É, também, uma imagem cujo poder está centrado na sua composição. Como defende Sontag (2003), o fotógrafo, nessa imagem, funciona como um verdadeiro espião, “[...] um observador privilegiado da dor alheia”.

Chama a atenção, do ponto de vista verbal, o sintagma, colocado acima da logomarca da revista: Reportagem Especial. À esquerda do rosto da mãe há também um texto centralizado, no meio da página, em três níveis. No primeiro, com tipos em caixa alta, a expressão Beslan, Rússia funciona como indicador geográfico do acontecimento registrado. Separado, por um fio vermelho, encontram-se em duas linhas a data do ataque: 3 de setembro de 2004. É a linguagem verbal funcionando como recurso de identificação de personagens ou lugares e como elemento de ancoragem temporal.

Na Figura 2, o recurso de apagamento de outros signos que compõem a imagem também se faz presente. De acordo com a legenda, está retratado, em primeiro plano, um pai que chora e que segura a mão do filho de oito anos, morto pela ação do Tsunami (nome japonês dado a terremotos que provocam ondas gigantes) ocorrido no último domingo de 2004.

Figura 2

Em segundo plano - com predomínio da cor azul, que remete à cor dos mares e oceanos - é possível observar imagens de casas destruídas pela ação das ondas gigantes. A comoção no leitor é ampliada pelo título O Mar dos Mortos, o qual está centralizado, no meio da página, e disposto em três linhas. No subtítulo da capa – “A catástrofe no Oceano Indico que matou mais de 100 000 pessoas é uma advertência sobre a fragilidade do homem diante da natureza” – , Veja pronuncia-se como um enunciador pedagógico. Ao emitir um parecer que o Tsunami é uma catástrofe que expõe a fragilidade do ser humano, Veja convida o leitor a partilhar o mesmo ponto de vista.

Esses dois exemplos de Veja mostram como as lentes das câmeras digitais e os softwares de edição de imagem permitem trazer o leitor para bem perto, proporcionando-lhe uma imagem extremamente nítida e ampliada da dor e do sofrimento. Isso confirma o que diz Sontag (2003, p.55): “na era das câmeras, fazem-se exigências novas à realidade. A coisa autêntica pode não ser assustadora o bastante e, portanto, carece de uma intensificação, ou de uma reencenação mais convincente”.

De fato, em Veja, um alerta feito por Sontag, em relação à imprensa americana, parece confirmar-se. Para a autora, em geral, os corpos com ferimentos graves que aparecem em fotos publicadas, na imprensa norte-americana, são da Ásia ou da África:


Essas imagens trazem uma mensagem dupla. Mostram um sofrimento ultrajante, injusto e que deveria ser remediado. Confirmam que esse é o tipo de coisa que acontece naquele lugar. A ubiqüidade dessas fotos e desses horrores não pode deixar de alimentar a crença na inevitabilidade da tragédia em regiões ignorantes ou atrasadas – ou seja, pobres – do mundo (SONTAG, 2003, p.62).

Pode-se até questionar que a imagem da Figura 1 refere-se a uma tragédia européia. Todavia não podemos esquecer que o episódio acontece em Beslan. Não é a Europa rica. Beslan, Rússia é uma das faces pobres da Europa.

A constatação de Sontag também se confirma quando percebemos como a morte é tratada nas edições 1913 e 1893. As vítimas de um ataque terrorista ao metrô de Londres (Figura 3), edição de 13 de julho de 2005, não ocupam o mesmo espaço de outras tragédias. No alto da página, há um retângulo com uma pequena imagem de uma vítima sendo socorrida. A expressão “Terrorismo”, grafada em caixa alta e em cor preta, tem mais espaço que a imagem. Deve-se destacar também como a revista cria especulações a partir dos fatos. Com a expressão “Nova York, Madri, Londres... Qual o próximo alvo?” Veja ativa a memória dos leitores e, com uma interrogação, convida-os a responder que outras cidades serão alvos de ataques de organizações terroristas.

Figura 3

A mesma situação ocorre na edição 1893, de 23 de fevereiro de 2005, com a morte da norte-americana Dorothy Stang (Figura 4). A fotografia mostra a freira estirada no chão, com vestígios de sangue nas costas. Através de um recurso de linguagem figurada, chamada antonomásia, Veja a intitula “A Mártir da Floresta”. Logo abaixo desse título, em tipos menores, Veja recorre a metáfora: “Junto com a irmã Dorothy morre outra chance de um destino menos trágico para a Amazônia”. Ao usar o verbo morrer, o enunciador Veja classifica como mínimas as chances de preservação da Floresta Amazônica. Com seu discurso verbal, novamente, age como um esclarecedor para o leitor.

Figura 4

Já a construção discursiva de IstoÉ, em relação à morte da freira norte-americana, apresentou outro enfoque (Figura 5). Na edição 1845, de 23 de fevereiro de 2005, o fato ocupou ¾ da capa. O espaço restante foi destinado a outras três chamadas, colocadas dentro de uma coluna em preto.

Figura 5

Com o título “Terra, Sangue e Impunidade”, centralizado, no meio da página, entre duas imagens de arame farpado sujos de sangue, IstoÉ mostra-se como um enunciador fiscal das ações governamentais. No aspecto verbal, a expressão “mais uma vez empurrado pela comoção”, presente no subtítulo, confirma essa interpretação. Para o enunciador IstoÉ, o governo só agiu porque foi movido pela comoção. A imagem da freira interpelando o leitor com olhar e com gestos, colocada no canto inferior direito da revista, é também uma mostra de como a imagem constitui-se em discurso. A metáfora visual – arame ensangüentado - expressa a subjetividade do enunciador e direciona a uma interpretação da imagem: essa é a forma como são encerradas as discussões entre membros e simpatizantes do Movimento dos Sem-Terra (MST) com latifundiários.

Em IstoÉ, durante o período analisado, também se constatou a utilização do recurso de apagamento de imagem. Um exemplo é a Figura 6, da edição 1846, de 2 de março de 2005, cujo título é “Exclusivo: Sonho e morte de brasileiros na fronteira americana.” No plano das imagens, destaca-se uma cruz, símbolo do Cristianismo. Nela estão colocados um boné, roupas e garrafas de água mineral. Graças a esses signos, a morte ganha concretude e adquire um de seus contornos principais, o da violência. Ao ter o olhar sensibilizado pelas imagens e pelos demais componentes gráficos que constituem essa capa de Istoé, chegamos à idéia de que a cruz – símbolo de condenação – encravada no deserto californiano é a parada final dos imigrantes ilegais.

Figura 6


GRUPO B: A PRESENÇA DOS MORTOS

Esse segundo grupo de imagens refere-se a uma preocupação universal do ser humano: a vida após a morte. Tema das diferentes religiões, a presença e a influência dos mortos entre os vivos tornaram-se tema das revistas semanais analisadas.

Rica de significação é a capa de Veja de 11 de maio de 2005 (edição 1904). É nítido, nessa edição, como o processo de criação de uma capa de revista é resultado da combinação de diversos procedimentos editoriais. Nesse caso, dispensou-se o flagrante fotográfico em nome de um recurso de computação gráfica. Trata-se de uma imagem conceitual: sob um fundo azul, é possível ver um corpo estirado e coberto com um lençol branco sobre uma cama. Acima dos pés do personagem, centralizado e no meio da página, há a expressão: “Vida após a morte”

.

Figura 7

Não é possível (nem necessário) identificar o rosto do personagem, pois um feixe de luz branca impede o leitor de assim o fazer. Nessa imagem, percebe-se nitidamente a presença da função predicativa das imagens. De acordo com Pinto(1994, p.8):


Para que uma imagem receba predicados é necessário que se acrescente a ela uma legenda verbal ou algum elemento iconográfico. A auréola acrescentada à imagem de um homem ou mulher predica a santidade dele ou dela, numa representação da tradição pictórica ou numa caricatura.

Na imagem em questão, Figura 7, no dedo máximo do pé esquerdo, encontra-se uma placa também branca com a seguinte expressão: “Volto já”. Assim como nos comércios, o letreiro indica ao leitor que a pessoa se ausentou, mas retornará em breve. A imagem assim reforçaria o ideal de superação da morte. O mortal, graças à placa com a expressão “Volto já”, torna-se imortal. É a vitória do humano contra a morte que está representada na capa da revista.

Com o apoio do verbal, o enunciador mostra-se onisciente, conhecedor dos mistérios existentes além do céu e da terra. Capaz de explicar “por que é tão forte a crença na reencarnação e na comunicação com os mortos”, o enunciador Veja apresenta-se, novamente, como um enunciador pedagógico.

O mesmo tema esteve presente em IstoÉ, durante o período analisado, na edição de 10 de novembro de 2004 (edição 1831). Sobre um fundo branco, a revista (Figura 8) apresenta aos leitores um caso particular, a partir do qual desenvolve o assunto vida após a morte. Em uma foto posada, a consultora educacional Maria Regina aparece estirando a mão e exibindo uma fotografia do filho Luiz Alberto. Através dessa estratégia enunciativa, Istoé propõe um diálogo mais próximo entre a entrevistada e o leitor.

Com o título “Conversas do além”, IstoÉ também mostra aos leitores que é possível a comunicação com os mortos. Reforça essa tese a fala da consultora: “Meu filho Beto está vivo e, de vez em quando, me escreve”. Morrer, no discurso dessas capas, definitivamente, não é o fim.

Figura 8


GRUPO C: DIANTE DA PROXIMIDADE DA MORTE

Fazem parte desse grupo imagens de pessoas que são apresentadas como portadores de doenças. Percebe-se que a intenção do discurso jornalístico não é apenas descrever fatos. Da combinação entre o imagético e o verbal, o enunciador faz surgir caminhos e atitudes que são referenciais.

Na edição 1899, Figura 9, Veja produziu uma de suas capas mais polêmicas. Com o título “A Grandeza da Fé ”, a revista apresentou aos leitores uma imagem obtida pelo italiano Pier Paolo Oto, da agência noticiosa AP, quando o papa, em 30 de março de 2005, grita de dor ao não conseguir fazer uma bênção.

Figura 9

Curiosamente, no mesmo sábado em que a revista chegava às bancas, 2 de abril, o Sumo Pontífice da Igreja Católica falecia em Roma. Essa junção de fatores – a morte do Papa e a dramaticidade da imagem – geraram 695 mensagens de leitores à revista Veja e artigos em veículos especializados em crítica da mídia.

Para a revista, não houve sensacionalismo nem vontade de chocar a população. A equipe editorial usou em sua defesa o que já havia dito abaixo do título da edição 1899: “Ao expor seu sofrimento terminal, o Papa João Paulo II mostrou a coragem dos grandes pastores e o significado original do sacrifício cristão.” De acordo com Veja, não houve um desrespeito ao sentimento dos católicos, mas a realização de uma vontade de João Paulo II.

O enunciado do subtítulo, aliás, nos faz acreditar em como o narrador Veja apresenta-se aos receptores: trata-se de um enunciador onisciente. Ao determinar que “expor sofrimento terminal é um mostra de coragem”, Veja não é apenas um observador à distância dos acontecimentos. De um lugar privilegiado, o enunciador descreve ações e motivações do personagem observado. Veja é, na verdade, um enunciador que conhece as motivações do Papa e que é capaz de validar (ou vaticinar?) suas atitudes.

As cores utilizadas nessa edição de Veja ampliaram os efeitos de sentido dessa capa. Note-se, por exemplo, a logomarca com o nome da revista, em preto. Um filete amarelo é utilizado ao redor das letras para distingui-las do plano de fundo escolhido. Aliás, o mesmo amarelo também está presente nas cores do título “A Grandeza da Fé” e na própria vestimenta do Papa. Nesse confronto de cores – preto e amarelo – mais do que as sombras e a luz, estão presentes o confronto entre a morte e a vida.

Outro fator que amplia a dramaticidade da imagem é ausência de outros indicativos de conteúdo jornalístico. O Papa João Paulo II é a grande âncora temática da edição. Assim como na Figura 1 sobre o ataque da escola em Beslan, esta capa de Veja não fez referência a nenhum outro tema da edição. O sofrimento do papa e sua proximidade da morte são – para o enunciador Veja – elementos suficientes para despertar o interesse social.

Seis edições depois da capa sobre a doença do Papa João Paulo II, Veja reafirma sua crença de que expor o sofrimento é uma atitude grandiosa e corajosa nos tempos contemporâneos. O caráter hegemônico de seu discurso é mantido com a Figura 10, edição 1905, de 18 de maio de 2005, que apresenta uma matéria com o ator Raul Cortez, vítima de câncer.

Figura 10

Além de um close do autor, compõem essa capa, à esquerda da página, uma tarja amarela com a expressão “Câncer”, uma citação do entrevistado (“Não quero que ninguém tenha pena de mim”) e um subtítulo. Nessa edição, Veja novamente posiciona-se como um enunciador capaz de revelar a intimidade dos olimpianos e colocar para os leitores “a luta pública” do ator Raul Cortez contra um câncer. Além de caracterizá-lo como corajoso, o enunciador determina, através de chamada na capa, que tal fato “é um sinal dos tempos” e que “pacientes e familiares sofrem menos ao enfrentar abertamente a doença”, Veja age, assim, baseada no que Fausto Neto (1991, p.53) chama de “uma deontologia de tudo poder, tudo saber e tudo poder dizer acerca da realidade”.

Além disso, o uso da imagem de um ator conhecido funciona como estratégia discursiva de Veja para consolidar sua capacidade de julgamentos dos acontecimentos. Para manter a validade de seu enunciado sobre a luta contra a morte, o enunciador Veja recorre a uma foto posada do ator Raul Cortez, que interpela o leitor com o olhar e com um sorriso. Como afirma Pinto (1999, p.39) a interpelação pelo olhar é uma forma “[...] pela qual o dispositivo de enunciação [..] procura estabelecer uma relação pragmática de proximidade ou de distância do receptor” .


4 Considerações finais

Por saber que os estudos de discursos ocupam-se, basicamente, de práticas culturais elaboradas a partir de materiais lingüísticos, apresentamos, neste artigo, um exame da imagem como elemento criador das noções de realidade e de atualidade. Constatamos que, nas capas, embora outros elementos sejam acionados, a imagem é o discurso predominante; além disso, discutimos possibilidades de interpretação delas.

Principalmente no grupo de imagens que enfoca a morte como tragédia, discutimos como elas geram sentidos e como são influentes para determinar a quais catástrofes e crises iremos prestar atenção. Por outro lado, mostramos que juízos estão associados à escolha de determinados personagens para compor as capas das revistas. Em capas como as Figuras 1 e 2 o discurso das revistas é construído a partir de construções imagéticas, que funcionam como uma reconstrução dos acontecimentos. Feitas com uma concepção estética, as imagens, produzidas com o fim de sensibilizar o receptor, constituem um elemento que dá maior dramaticidade às cenas.

Verificamos também que as Figuras 4, 5 e 6, por exemplo, incitam os receptores a indignarem-se diante de determinadas tragédias. Principalmente na Figura 6 em IstoÉ, encontra-se um enunciador que fala sobre injustiças. Em seu discurso, alguém tem que ser cobrado ou punido.

Coincidentemente, ambas as revistas organizam um discurso sobre as possibilidades de comunicação com os mortos. Nas Figuras 7 e 8, elas não somente relatam essa situação, a presença dos mortos na sociedade, como se posicionam da seguinte forma: a morte é o fim da matéria, não da existência.

Sendo as fotografias elementos dotados de sentido, as revistas não fazem só uma intermediação entre o leitor e o real. A respeito do tema morte, elas constroem uma discursividade bem específica.Veja, assumindo uma posição de detentora do conhecimento, nas Figuras 9 e 10, por exemplo, ensina como o leitor deve agir e reagir diante da morte ou da proximidade dela.

Por fim, reforçamos a necessidade de outras análises como essa sobre o jornalismo interpretativo das revistas semanais de informação. Se as revistas apresentam marcas discursivas que lhes dão identidades especificas, são necessárias mais investigações sobre como elas articulam suas estratégias de enunciação sobre a morte e/ou outros temas vitais.


The representation of the death in the covers of weekly magazines Veja and IstoÉ
ABSTRACT
Using, mainly, the concepts of Social Discourse Theory, this paper investigates the representation of death in the cover of weekly magazines Veja and IstoÉ, in the period from July 2004 to July 2005. Considering covers as privileged space of meaning process, we analyze the discursive strategies used by the magazines in the constitution of the subject death, basic theme to humankind.
KEYWORDS: Image. Death. Magazine. Discourse analysis




La representación de la muerte en las portadas de las revistas semanales Veja e IstoÉ
RESUMEN
Utilizando, principalmente, conceptos de la Teoría de los Discursos Sociales, este artículo investiga la representación de la muerte en las portadas de las revistas semanales Veja e IstoÉ, en el periodo de julio del 2004 a julio del 2005. Partiendo del principio de que las portadas son espacios privilegiados de producción de sentidos, se analizan las estrategias discursivas utilizadas por las revistas en la constitución del concepto muerte, tema básico para la humanidad.
PALABRAS CLAVE: Imagen. Muerte. Revistas. Análisis del discurso.



Notas

[1] Edward Munch (1863-1994), segundo a crítica especializada, foi um artista obcecado pela morte. Dentre suas obras destacam-se Mãe Morta e Criança (1901) e O Leito de Morte e a Febre (1896). Já Claude Monet (1840-1926), retratou, por exemplo, sua primeira esposa em Camille no Leito de Morte (1879).


Referências

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Antônio Aílton Ferreira de Cerqueira
Mestre em Letras (UFPI) Professor do curso de Comunicação Social da Faculdade Santo Agostinho
E-mail: ailtoncerqueira@yahoo.com.br
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