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Apresentação da Seção Temática

A complexidade do mundo contemporâneo tem tido impacto significante no cotidiano das instituições educativas. As fronteiras entre o interior e o exterior da escola mostram-se cada vez mais permeáveis aos processos socioculturais e os percursos de vida dos sujeitos que nela trabalham e estudam se tornaram cada vez mais diversos. O discurso e a promulgação das políticas públicas, da investigação científica e dos processos de formação e atuação docente têm sido convocados a refletir sobre o que se passa no cotidiano dessas instituições. De modo especial, é importante considerar as implicações desse processo para a efetivação da cidadania, dos diretos humanos e do direito à educação, com o objetivo de garantir a aprendizagem e uma vida digna a todos.

À luz desses fatores, este dossiê - Diálogo e Convivência no Cotidiano da Educação - intenciona promover uma discussão sobre espaços educacionais e suas margens em uma perspectiva dialógica plural. Reunindo uma série de artigos sobre educação formal e não formal de vários países, o dossiê centra-se principalmente no nível microssociológico das interações educacionais, com base em abordagens etnográficas. Contudo, o nível macrossociológico não pode ser esquecido, dada a importância de compreender como são produzidas as relações de interdependência nos interstícios entre o que acontece no cotidiano das instituições e o que se passa no âmbito do social.

O panorama global do contexto atual nos apresenta uma coexistência de relações extremas e contraditórias. De um lado temos a luta pelo reconhecimento da diversidade humana em uma coexistência planetária harmoniosa. De outro, as dificuldades na aceitação das diferenças e, em consequência, o apego às homogeneizações. Os desafios de uma sociedade globalizada em que se abrem as fronteiras da economia e da mobilidade humana (pelo menos para os privilegiados) trazem à cena o debate sobre as colonizações econômicas e, também, sobre as colonizações culturais. Bauman e Bordini (2016BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2016. ), ao discorrerem sobre o estado de crise, explicam que muitos dos tensionamentos vividos no século XXI decorrem da impotência das esferas políticas locais em solucionar os problemas estruturados no âmbito global, visto que a esfera global não considera ou é incapaz de implementar o vivido localmente. À luz desse cenário, as reflexões sobre o diálogo e a convivência na vida cotidiana são oportunas. Esta edição especial baseia-se em Lefebvre (1991LEFEBVRE, Henri. Vida Cotidiana no Mundo Moderno. Tradução: João de Barros. São Paulo: Editora Ática, 1991. , p. 131), entendendo que:

O cotidiano é humilde e sólido, é o que se move por si só, cujas partes e fragmentos estão ligados entre si no uso do tempo. Ou seja, sem a necessidade de um exame da articulação dessas partes. É, portanto, o que não tem data. É (aparentemente) insignificante.

Em complemento, de acordo com a concepção de Pais (2003PAIS, José Machado. Vida Cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo: Cortez Editora, 2003., p. 31), o cotidiano pode ser entendido como uma rota de conhecimento, cujo desafio “[...] é o de revelar a vida social na textura ou na espuma da ‘aparente’ rotina de todos os dias, como a imagem latente de uma película fotográfica”.

As considerações teóricas e empíricas que os autores desta seção temática evocam, no enquadramento de seus focos de pesquisa, proporcionam a oportunidade de observar a vida cotidiana de processos educacionais formais e não formais através de diferentes lentes. Permite também conhecer as interações que ocorrem nos meandros do cotidiano escolar e não escolar e, a partir delas, dar visibilidade aos retratos dos diversos modos de viver e fazer a educação contemporânea, nos seus mais diferentes níveis e modalidades. Nas palavras de Lefebvre (1991LEFEBVRE, Henri. Vida Cotidiana no Mundo Moderno. Tradução: João de Barros. São Paulo: Editora Ática, 1991. , p. 35), observar o cotidiano possibilita:

[...] caracterizar a sociedade em que vivemos, que gera a cotidianidade (e a modernidade). Trata-se de defini-la, de definir suas transformações e suas perspectivas, retendo, entre fatos aparentemente insignificantes, alguma coisa de essencial, e ordenando os fatos. Não apenas a cotidianidade é um conceito, como ainda podemos tomar esse conceito como fio condutor para conhecer a sociedade.

Os textos aqui reunidos não têm a pretensão de englobar a totalidade das dimensões do cotidiano na educação, nos espaços formais e não formais, mas fornecem diversos recortes para pensar a educação no mundo contemporâneo. O dossiê começa com a contribuição de Alex Guilherme e John Morgan, Refletindo sobre o Papel do Professor: Buber, Freire e Gur-Ze’ev, que fornece uma discussão teórica crucial para sustentar os demais textos da seção temática. Com base nesses três teóricos, por sua vez, os autores distinguem o papel do professor entre três modos - o professor-construtor, o professor-político e o professor improvisador - extraindo implicações para a compreensão do seu papel na sociedade contemporânea.

O cotidiano dos processos educacionais em ambientes não formais é explorado por meio dos dois artigos que se seguem. O primeiro, é de autoria de Spyros Themelis, Aprendendo com e a partir dos Movimentos da Educação na Grécia e no Brasil: saberes, ação e alternativas. Este estudo comparativo com movimentos sociais nos dois países explora a natureza do conhecimento ativista, focalizando particularmente a relação entre teoria e ação, processos dialógicos plurais e o papel da reflexão na consciência crítica.

O estudo de Marika Tsolakis, Espaços de Discussão na Rua na Costa do Marfim Pós-Conflito: aprendizagem não formal, diálogo e cotidiano, também justapõe duas formas de espaço de aprendizagem não formal, mas neste caso os ‘grins’ e ‘agoras’. Esses grupos de discussão de rua fornecem uma arena para o diálogo entre diferentes gerações e grupos sociais, mediando as diversas preocupações políticas, pessoais e profissionais dos participantes.

No artigo de Ivette Hernandez - Ativismo da Juventude no Chile: das desigualdades educacionais urbanas às experiências de convivência e de solidariedade - o foco se volta para o Chile e as mobilizações dos estudantes do ensino médio em 2006 e os estudantes universitários em 2011. A autora desafia as concepções convencionais de centro / periferia e inclusão / exclusão, mostrando as complexas geografias das desigualdades na escolaridade chilena e os espaços de empoderamento e ação política.

Retornamos novamente à Grécia no Pensamento Crítico e Desafios na Educação para a Cidadania Democrática: um estudo etnográfico em escolas de ensino fundamental na Grécia, de Ioanna Noula. Aqui, a autora aborda a interseção entre a política pública e o cotidiano nas escolas, no contexto de uma reforma curricular integrada. Os exames de admissão da universidade e as expectativas dos pais acabam limitando os esforços dos professores para promover o pensamento crítico na sala de aula e prejudicando o projeto de fortalecimento da cidadania democrática.

Cristina Perales Franco usa uma abordagem etnográfica para explorar a convivência no contexto das escolas primárias públicas no México. No artigo, Abordagem Etnográfica à Convivência na Escola, a autora explora as sutilezas do significado desse conceito de convivência (termo sem tradução exata para o inglês), distinguindo entre abordagens restritivas e abrangentes, e extraindo implicações para as relações dentro das escolas, e entre escolas e comunidades locais.

A Simbologia dos Apelidos na Vida Cotidiana Escolar, é o foco da análise de José Machado Pais. Em um estudo comparativo de diferentes contextos escolares em Portugal e no Brasil, ele explora esses fenômenos e a gíria cotidiana como um dispositivo metodológico para a compreensão da realidade das escolas e seus processos sociais.

Na contribuição final do dossiê, A Coisificação da Relação Pedagógica no Cotidiano Escolar, Nilda Stecanela explora o conceito de coisificação de Freire, significando literalmente transformar o Outro em um objeto para atender uma expectativa ou uma necessidade, nesse caso, desumanizando a relação pedagógica. A autora concentra-se nas culturas da reclamação nas escolas brasileiras, com base em pesquisas narrativas com professores e alunos, mostrando os distanciamentos que dificultam um relacionamento verdadeiramente dialógico.

Essas contribuições, portanto, unem considerações oriundas de seis países, distribuídos em quatro continentes, e uma diversidade de níveis e espaços educacionais, fornecendo uma vasta gama de reflexões para desenvolver uma compreensão mais profunda do cotidiano da educação. O que emerge de todos eles - no contexto dos contemporâneos desafios de populismo divisivo, fragmentação social e individualização - é a importância da transição da coexistência para a convivência. Refletindo as noções de Galtung (1996GALTUNG, Johan. Peace by Peaceful Means. Oslo; London: Sage Publications; PRIO, 1996.) de paz negativa e positiva, o que é necessário não é apenas um movimento de conflito explícito para aceitação e tolerância, mas sim para uma vida que envolva compreensão e diálogo. Essa forma de viver juntos permite não só sociedades e políticas viáveis e coesas, mas também a oportunidade para conscientização e de forjar a transformação social de acordo com a justiça.

Esta seção temática centrou-se no cotidiano da educação como contraponto às análises mais comuns da desigualdade educacional a partir de uma perspectiva macro - embora, como afirmamos acima, uma compreensão plena da educação requer uma interação entre essas duas lentes. Escolas e espaços educacionais não-formais são influenciadas pelas relações e dinâmicas justas e injustas da sociedade, mas também são produtores delas: a literatura de longa data sobre o currículo oculto nos mostrou o lado pernicioso dessa relação. Precisamos também reconhecer o papel mais esperançoso e gerador desses espaços. Uma escola genuinamente para todos - com todos os seus desafios e imperfeições, como demonstrado pelos artigos neste número - é fundamental para o projeto de uma sociedade justa e humanitária.

References

  • BAUMAN, Zygmunt; BORDONI, Carlo. Estado de Crise. Tradução: Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.
  • GALTUNG, Johan. Peace by Peaceful Means. Oslo; London: Sage Publications; PRIO, 1996.
  • LEFEBVRE, Henri. Vida Cotidiana no Mundo Moderno. Tradução: João de Barros. São Paulo: Editora Ática, 1991.
  • PAIS, José Machado. Vida Cotidiana: enigmas e revelações. São Paulo: Cortez Editora, 2003.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
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