AMOR E CORTESIA NA LITERATURA CONTEMPORÂNEA:
UM ESTUDO DOS “ROMANCES ROSAS” E SUA RELAÇÃO COM OS ROMANCES DE CAVALARIA

Márcia Cavalcanti 1

 

Resumo: O presente trabalho pretende discorrer sobre a possível relação entre os romances de cavalaria que surgem por volta do século XII na Europa e um tipo específico de literatura produzido hoje, conhecido como “romances rosas”, que tem como público as mulheres. Iremos refletir como o amor cortês, presente nos romances medievais, reaparece nessa literatura produzida no século XXI com histórias que são ambientadas na idade média. .

Palavras-chave:Amor cortês; Estudos Medievais; Romance de cavalaria.

 

 
A inocente Margriet Gunnarsdottir guardava um terrível segredo. Rurik Erengislsson havia jurado levá-la em segurança. Uma mulher a serviço do Senhor deveria ser protegida e honrada, e não desejada! Mas, mesmo assim, a tentação de possuí-la era mais forte que a razão...
T. Brisbin.

Introdução

A questão central que pretendemos abordar neste artigo é a possibilidade de comparar um determinado tipo de literatura que faz sucesso no Brasil desde 1920, denominado romance rosa, aos romances de cavalaria medievais a partir de sua temática de amor cortês. Também buscamos identificar os usos que são feitos hoje em dia da idade média, ou seja, do imaginário medieval.
As fontes utilizadas serão os romances escritos no século XXI que nos remetem àquele período, mais especificamente a série “MEDIEVAL – Terras Altas”, da Harlequin Books. Será feita uma comparação entre esse tipo atual de produção literária e a estrutura dos romances de cavalaria publicados a partir do século XII.
Esse estudo procura relacionar o campo literário com o histórico e o antropológico, a partir do entendimento da literatura como uma das fontes passíveis de utilização pela historiografia, e desses dois campos como elementos de expressão dos valores sociais e culturais. E tanto a história quanto a literatura encontram-se presentes no imaginário da sociedade, pois ambas sempre foram ilustrativas das representações sociais construídas pelas diferentes sociedades em diferentes épocas.
Segundo Spina (1997), a estrutura social é, em boa parte, responsável pelas grandes divisões da produção literária medieval. Entretanto, nem sempre a permanência histórica (ou o ressurgimento) de certas formas literárias constitui expressão da realidade social que lhe é contemporânea. Assim, podemos observar que o chamado romance de cavalaria medieval ainda terá sua produção tardia, mesmo quando a sociedade que lhe deu origem já tenha passado por um processo de reestruturação, não mais existindo essa relação entre a literatura e a realidade social.
No período medieval, com o predomínio da Igreja em todas as esferas da vida social, era de se esperar que a literatura produzida focasse sua atenção apenas para os considerados valores sagrados. Mas as numerosas obras literárias do período nos mostram que, fora dos muros da Igreja, era produzida uma literatura que optava francamente por seguir outros caminhos.
Originários das canções de gesta francesas, que são as canções que relatam os feitos heroicos dos nobres, as novelas de cavalaria narravam as aventuras de heroicos cavaleiros que passavam por situações muito perigosas para defender o bem e vencer o mal. Essas novelas são divididas em três ciclos, cada um caracterizado pelo tipo heroico que retrata: ciclo clássico – heróis da mitologia greco-romana; ciclo arturiano ou bretão – o rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda; ciclo carolíngio – o rei Carlos Magno e os doze pares de França.
Os romances de cavalaria eram recitados durante as festividades do castelo, constituindo assim o primeiro gênero não cantado da Idade Média. Eles têm, como estruturas essenciais, narrativas literárias em capítulos que contam os grandes feitos de um herói (acompanhado de seus cavaleiros), entremeados de célebres histórias de amor.
Representantes da prosa medieval, essas obras evocavam ideais como respeito à figura feminina, amizade incondicional, honra à cristandade, entre outros. Além dessas características, observa-se também a presença do chamado amor cortês.
Não podemos falar de amor nesse período sem falarmos do casamento e de sua realização. Os matrimônios eram arranjados e não passavam de um estratagema para consolidarem-se alianças políticas e interesses econômicos, e para preservar a manutenção do patrimônio. 

 
De qualquer forma, o casamento não é o lugar do que se define então como o amor. Pois é proibido ao esposo e à esposa lançarem-se um ao outro no ardor e na veemência. [...] o sentimento que liga o homem e a mulher não deve ser da mesma natureza no interior e fora da célula conjugal. (DUBY, 1989)..

O amor cortês, cujo termo foi cunhado pela crítica moderna, mas que designa um tipo de amor fundado na sublimação da dama, pode ser considerado como uma reação à moral religiosa e uma vontade de mudar os costumes predominantes na sociedade. A realização deste amor compreende um homem apaixonado, que se entrega de corpo e alma a enaltecer a mulher amada, e uma dama inatingível, ou porque já está casada, ou porque está espacialmente inacessível. E ao redor deles, um amor que traz em si tanto uma dimensão idealizada quanto uma carga de erotização.
O período compreendido como Idade Média é muitas vezes caracterizado como um período de incertezas, dúvidas e questionamentos, sendo, inclusive, denominado durante muito tempo como Idade das Trevas. Segundo Franco Jr. (1986, p.19), essa denominação refere-se ao “desprezo indisfarçado pelos séculos localizados entre a Antigüidade Clássica e o século XVI”, donde podemos interpretar que, segundo este autor, o desinteresse em estudar esse período era claro.
Acreditando no fato de que existe uma relação entre a ficção e a vida real da comunidade em que ela é produzida, o escritor busca nos modelos reais que o cercam a inspiração que irá moldar suas obras. Mas partimos do pressuposto de que as histórias contadas nos romances de cavalaria medievais nos mostram um mundo que não condiz totalmente com os relatos históricos que aprendemos sobre o período. Esse mundo recriado na literatura tem uma aura de refinamento, com cavaleiros galantes e dispostos a qualquer tipo de sacrifício em benefício de sua amada.
Assim, o amor cortês deve ser compreendido como uma criação literária. É fruto de uma literatura de evasão em que a corte depositava nos poetas o poder de alimentar seus sonhos e os levassem para longe das inquietações e ciladas da vida cotidiana. (VILAR, s/d).

 
Para além de defini-lo a partir dos seus aspectos e paradoxos essenciais, é ainda imprescindível compreender que o Amor Cortês foi produto de um tempo histórico e de uma sociedade específica. Se o seu discurso adquire ressonância em outras sociedades, como a nossa, é porque ele encontra novas motivações sociais capazes de interessar os homens de um novo tempo em consumirem e em se apropriarem das concepções e do imaginário do Amor Cortês. (BARROS, 2007, p.29).

Como também podemos dizer que exista um interesse em consumir e apropriar-se de todo um imaginário correspondente a um determinado período da história que continua “obscuro” para a maioria da população, o que define por si só o interesse mostrado por um público específico em nosso objeto de discussão neste trabalho.

Os romances “rosas”

Na literatura existem diferentes tipos de gêneros que atendem, de certo modo, à demanda do universo social. Tanto gêneros que apresentam uma reflexão sobre a sociedade, marcando uma preocupação com a vivência humana em suas infinitas possibilidades, quanto gêneros marcados e classificados especificamente como de consumo, ou seja, que não levariam os leitores a uma reflexão, cujo único objetivo é o entretenimento.
Dentro desses gêneros de consumo, podemos verificar a existência de um filão classificado como “subliteratura” 2, fazendo referência a um conjunto de obras literárias que tem importância social menos significativa, mas que curiosamente tem mantido uma publicação constante, tanto em relação à quantidade quanto ao período temporal.
Um nicho bem explorado dessa “subliteratura” que faz sucesso entre as mulheres desde 1920, é aquele classificado como romances “rosas” ou “para mulherzinha”. O sucesso desse tipo de literatura ocorria em consonância com uma educação feminina que era essencialmente uma educação que preparava a mulher para exercer dois papéis fundamentais na sociedade, ser esposa e mãe, principalmente as jovens das classes mais favorecidas. Enquanto não casavam, as mulheres liam essas histórias que, segundo Maria Teresa Cunha (1999, p.25), tinham enredos, via de regra, com uma estrutura bem definida: um herói rico e uma heroína pobre vivendo percalços criados pelos personagens maus, com um final onde os maus eram sempre castigados e os bons recompensados. Ou seja, um tipo de romance ingênuo, que traduzia bem o comportamento feminino da época, quando a mulher era policiada pela família através de uma educação moral rígida.
Os tempos mudaram e o papel da mulher na sociedade também se modificou. Nos anos 90, esse tipo de literatura acaba abrindo espaço para enredos que refletem a vida moderna, com mulheres que saem para o mercado de trabalho, e que não mais esperam por um marido que as sustentem, mas que ainda esperam viver um amor romântico. Um exemplo dessa literatura são as coleções publicadas pela Editora Nova Cultural desde o final da década de 80 e que continuam fazendo sucesso até os dias atuais, e que têm como carro chefe as séries Sabrina, Julia e Bianca. Somente “Sabrina”, a pioneira, comercializa 40 mil unidades todos os meses, segundo informações da editora.
As histórias acompanham as mudanças ocorridas na sociedade e no comportamento feminino, desde seu lançamento, em 1978. Os temas abordam a independência profissional e sexual da mulher, a sua visão diante da família e dos relacionamentos e os novos valores adquiridos no século XXI. Os lançamentos semanais como “Julia” e “Sabrina” são os que mais vendem. Depois, o preferido é “Clássicos Históricos” 3.
Além da Editora Nova Cultural, encontramos também a Harlequin Books que explora esse mesmo filão de literatura voltada especificamente para um público feminino. Com diversos títulos publicados no Brasil, que como os da Nova Cultural são traduzidos para o nosso idioma, o que chama a atenção é a série “Harlequin Históricos” 4, que, como o próprio nome já diz, são histórias dirigidas ao público feminino e que passam em períodos históricos específicos, ou seja, desde a Idade Média até o século XIX, onde cada série promete levar o leitor a diferentes tipos de histórias, sejam elas históricas ou contemporâneas.
Mas afinal, o que essas séries têm de tão especial? Histórias românticas, com linguagem simples, tramas envolventes e preço acessível, além de ser comercializada em bancas de jornal, o que facilita bastante o seu acesso ao público.

Romances de cavalaria modernos

É intrigante como o período histórico conhecido como Idade Média consegue exercer tanto fascínio sobre as pessoas, mas o mais intrigante é justamente a literatura inspirada nesse período fazer sucesso no Brasil, que não o viveu, principalmente entre um público que pouco o conhece. Causa surpresa perceber um consumo desse tipo de literatura em um país em que o conhecimento sobre o período fica muito no nível do senso comum. A difusão do ensino formal da idade média é muito limitada, e o que vai ensinar à população como esse período se processou é, na maioria das vezes, o filme e a literatura de uma maneira geral.
Quando identificamos, em pleno século XXI, histórias voltadas para um público específico, feminino, em que podemos encontrar a estrutura do que é classificado pela literatura como romances de cavalaria, somos levados a acreditar que os valores que são considerados socialmente importantes naquele período histórico (honra, lealdade, nobreza) ainda são importantes no mundo contemporâneo.
Como colocou Le Goff (2006, p.12),

 
Somos freqüentemente medievais quando nos vangloriamos de sermos modernos; e freqüentemente não passamos de ‘apreciadores da idade média’, quando cremos nos enraizar no tempo das catedrais, dos cavaleiros, dos lavradores e dos comerciantes. Os códigos e os valores desse longínquo passado-próximo são bem mais estranhos a nós do que habitualmente pensamos. Mas lhe devemos bem mais do que queremos admitir.

Neste contexto é que destacamos o chamado “romance rosa” como elemento de expressão da contemporaneidade dos valores de um determinado período da idade média. Como aspecto interessante a ser abordado está a construção e reconstrução do ao papel social do homem e da mulher. Mesmo com uma diferença espacial e temporal, podemos perceber que a mulher de hoje, com toda a independência que conseguiu conquistar e que lhe permitiu assumir uma nova posição social, ao consumir essa literatura, onde a mulher retratada acaba sempre se rendendo ao amor, reafirma algumas das características e idealizações que conformam socialmente a representação feminina, como a busca de um amor romântico ou a de um príncipe encantado.
Como fala Barros (2007, p.25),

 
Em que pese a nossa distância temporal em relação à sociedade que produziu o Amor Cortês, não é particularmente difícil para um homem ocidental do século XX compreender a sua essência – uma vez, que no fundo, a maior parte dos romances e dos filmes de amor que ele consome nas suas horas de lazer participam de uma concepção similar à do Amor Cortês. Este homem moderno, sintomaticamente, preenche o seu imaginário precisamente com o que lhe falta na sua vida concreta: romance, paixão, aventura, entrega, abnegação, ideais irredutíveis e profundos. Nada mais avesso à vida utilitária e calculista do moderno capitalismo do que esta concepção idealizada do amor, onde a paixão é conduzida aos seus extremos e deve ir vencendo os múltiplos obstáculos que lhe são apresentados, em um processo que estranhamente acarreta em extremo sofrimento e que, curiosamente, chega a perder o sentido assim que o último obstáculo é superado.

Ainda seguindo o pensamento de Barros (2007, p.35), e para concluir nosso trabalho, podemos refletir sobre mais um elemento de contato entre esses romances de cavalaria que sublimam o amor cortês e os “romances rosas”. Ambos representam em seu discurso o desejo pela autonomia dos sentimentos, a ruptura de padrões e dos imperativos sociais, que configuram uma revolução imaginária. Podemos dizer que esse amor irá se realizar no mundo da imaginação, em vista de sua impossibilidade de realização no mundo real. Na idade média, as imposições sociais e religiosas configuravam-se como o obstáculo de sua concretização, enquanto que na atualidade esse ideal romântico torna-se incompatível com a própria vida moderna.

 

Love and courtesy in contemporary literature: a study on “chick lit” and its relation to chivalric novels.

Abstract:The present work aims at discoursing about the possible relation between chivalric romance, which emerges around the 12th century in Europe, and a specific kind of current literature, known as “chick lit”, which finds in women its audience. We are going to reflect upon how courtly love, which is present at chivalric novels, reappears in this 21st century literature with stories set in the Middle Ages.

Keywords:Courtly love. Medievalism. Chivalric romance.

 

1 Universidade Gama Filho – UGF. Mestre em Ciência da Informação. Endereço eletrônico: marciacavalcanti@gmail.com.

2 Um significado para o termo seria uma literatura de segunda categoria, que não tem status. Um estilo menor de literatura.

3 http://www.universodamulher.com.br. Acessado em: 25 abr. 2009.

4 Os títulos que abordam temas centrados na Idade Média fazem parte da coleção de bolso.

 

Referências:

BARROS, J. O Amor Cortês: uma análise crítica. PLUSS Revista Eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Língua Portuguesa e Literatura da Universidade Severino Sombra, Vassouras, vol. 1, n. 1, mar. 2007. Disponível em: www.areadeletras.com/pluss/assuncao.pdf. Acesso em: 25 abr. 2009

BRISBIN, T. Entre a honra e o desejo. Série HR Históricos. Rio de Janeiro: Harlequin Books, s/d.

CUNHA, M. T. S. Armadilhas da sedução – os romances de M. Delly. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

DUBY, G. Idade Média, Idade dos Homens. Do amor e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

FRANCO JÚNIOR, H. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.

LE GOFF, J. Em busca da idade média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

SPINA, S. A Cultura Literária Medieval, uma introdução. São Paulo: Ateliê Editorial. 1997.

VILAR, F. S. Lancelote e os moldes do amor cortês. Publicações de Alunos de Graduação e Pós-Graduação do Instituto de Estudos da Linguagem – Unicamp. Disponível em: http://www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/l00008.htm. Acesso em: 25 abr. 2009.