IMAGENS DA IDADE MÉDIA NA CULTURA ESCOLAR

Nilton Mullet Pereira 1

 

Resumo: O artigo aborda, de maneira geral, o problema da Idade Média construída fora do espaço acadêmico e, de maneira particular, a questão do ensino de Idade Média na Escola Básica. Também considera a especificidade da Cultura Escolar e do ensino de História na Escola, enfatizando os limites e as particularidades desse ensino em relação ao espaço acadêmico. O artigo constitui um quadro do modo como a Idade Média tem sido vista por parte dos livros didáticos e das aulas de História, contraponto necessário para pensar uma Idade Média mítica e fantasiada que transita pelo senso comum da nossa sociedade através do cinema, da televisão ou dos jogos de computador.

Palavras-chave:Idade Média; Ensino de História; Cultura Escolar.

Introdução

Um pequeno número de representações cristalizadas em nossa memória coletiva informa às pessoas em geral sobre a Idade Média e constrói algumas imagens bastante peculiares. Uma reduzida quantidade de clichês pode caracterizar tais imagens de modo bastante visível: o cavaleiro realizador de façanhas heróicas, seguido pelo olhar apreensivo e esperançoso de sua amada, que o espera e por quem ele luta (CAZENAVE, 2000); uma guerra movida pelos valores e interesses da Igreja Cristã; os trovadores que cantam o amor e alegram os castelos dos senhores feudais. Essas imagens, talvez reunidas junto a algumas outras que mostram os flagelos da peste, por exemplo, habitam o imaginário popular no Brasil sobre a Idade Média, construído, sobretudo, através das telas de cinema, da televisão e, mais recentemente, dos jogos de computador e das revistas de grande circulação. Não são essas as imagens, porém, que circulam no ambiente escolar sobre o período medieval. Enumerar dois ou três clichês que caracterizam este imaginário sobre a Idade Média não se constitui uma tarefa muito difícil: podemos pensar no Feudalismo, reconhecido como um modo de produção que se estende desde o final do Império Romano até a queda de Constantinopla; ou no excessivo controle da Igreja Católica sobre a vida dos indivíduos, “desde o nascimento até a morte”; ou ainda na mal fadada peste que teria dizimado um terço da população europeia e que marca o fim de uma época “média” de flagelos, de guerras, de fome e de desorganização política.
Há uma diferença bastante significativa, portanto, entre o que o senso comum e a escola imaginam sobre a Idade Média. Na escola, esse período é muito mais tenebroso, bem menos lírico, mais seco e menos fantástico do que no cinema 2 e na televisão ou nos jogos de computador. Enquanto no cinema circulam imagens de damas cortejadas por cavaleiros e suas façanhas heróicas em busca de reconhecimento, na escola o que circula é o tom seco e árido do domínio da Igreja e da falta de criatividade; o encantamento do romance de Abelardo e Heloisa, dramatizado no cinema pelo filme Em Nome de Deus 3, não passa perto dos “muros da escola”. A Idade Média, no âmbito da cultura escolar, continua a ser o espectro do Ocidente – lugar em que o Ocidente iluminado busca o seu Outro, o contraste justificador da sua idade adulta 4.
Duas Idades Médias se colocam diante do observador e à margem da pesquisa acadêmica: a “Idade Média Fantasiada”, partilhada pela literatura, pela arte e, sobretudo, pelo cinema, e que tem servido como uma das tantas linhas de fuga em relação à sobriedade de uma sociedade como a nossa; e a Idade Média da cultura escolar, tão sóbria quanto à sociedade que lhe dá origem.
Este artigo pretende mostrar o jogo que organiza o que sabemos e como usamos o que sabemos da Idade Média na nossa sociedade. Um jogo que constitui uma tensa harmonia entre o interior e o exterior da escola; entre os espaços de representação sobre a civilização medieval, tais como o cinema e a televisão e o espaço da escola.

Perspectiva de análise

O exame que realizo sustenta-se na perspectiva de que esse jogo é, na superfície, um embate discursivo que compreende o movimento da história como um conflito, como uma luta intensa e incessante pela verdade 5. O que sabemos sobre a Idade Média e, principalmente, o que imaginamos ser a Idade Média, foi constituído, passo a passo, por um dispositivo de poder 6 que a história do Ocidente começou a criar no princípio da Era Moderna. A partir daí, o Ocidente aprendeu a olhar para si mesmo tendo como espelho a tenebrosa experiência da media tempestas que, como espaço de uma espessa noite gótica, ou como lugar da infância das nações, serviu de contraste da racionalidade afirmada pela Ilustração como modelo universal de pensar e de viver.
A Idade Média, considerada como o lugar de uma intensa religiosidade, como o lócus da desrazão e como noite interminável, é o outro lado da luz que se fez no Ocidente. A Idade Média tornou-se, muito facilmente, estas duas faces que hoje dela imaginamos: a fantasia e as trevas. Tanto uma quanto a outra são, irremediavelmente, enunciados de um mesmo dispositivo de poder que olha para a Idade Média como o espaço fantástico da desrazão. Assim, convivem lado a lado cavaleiros, damas, magos, guerras, pestes, morte e amor romântico. Aspectos tão, aparentemente, contraditórios, mas como pedras colocadas sobre um mesmo tabuleiro, sobre um mesmo plano, sobre um mesmo conjunto de regras que constituem um discurso que nos faz imaginar uma Idade Média como o lugar de uma história tão distante de nós que parece mesmo fora do tempo – admirável e medonha; fantástica e tenebrosa. A história que conhecemos passa a ser a história da razão.
A escrita da história é uma prática social de alta relevância na medida em que o ofício dos historiadores, e também dos professores de História, nas escolas, se revela como uma contra memória que precisaria mostrar os contornos de uma Idade Média como o lugar de nascimento do que conhecemos como Civilização Ocidental. Escrever a história é entrar num jogo de representações (CHARTIER, 1991) que implica tanto o debate acadêmico, quanto o debate com as representações que a sociedade, sobretudo através da mídia e do cinema, produz acerca da história. O ensino de História está igualmente imerso em um interminável jogo de reconstituição da memória, de redefinição das imagens que as sociedades constituem sobre seu próprio passado e sobre os outros. Desse modo, o ensino de História, tal qual o cinema, os jogos ou a televisão, cria modos de ver e de imaginar o passado. Sóbrio ou fantástico, tenebroso ou fantasioso, o passado é uma criação que se dá no presente e este é o mesmo espaço das lutas discursivas pelo direito de dizer a verdade sobre o tempo que passou. É assim que a escrita da história está inserida nas guerras e nos combates políticos do presente.
Este texto, uma contribuição para a compreensão do debate contemporâneo sobre o medievo, quer estar dentro e fora desse debate. Fora, para olhar e compreender o jogo dos participantes; dentro, porque este texto é um dentre aqueles que querem construir modos de olhar e de imaginar a Civilização Medieval.

O fora

Nestes últimos tempos, é inegável supor que a nossa sociedade tem modificado bastante seu olhar sobre a Idade Média e abandonado aquela posição claramente preconceituosa constituída desde os tempos do Renascimento Moderno e consolidada pelos homens da Ilustração. Nesse sentido, o interesse pelo período tem crescido a tal ponto que podemos verificar não apenas o medievo como objeto do cinema, mas da literatura, dos jogos de computador ou das revistas de grande circulação. Uma série interminável dos chamados romances-históricos sobre os cavaleiros do Rei Artur é vista com frequência nas bancas de jornal, bem como diversos números de revistas de história são dedicados a temas medievais.
Independente, porém, do veículo que ressuscita o medievo ou que dele se sirva para comercializar livros, revistas ou jogos, os temas mais frequentes não são as guerras, apesar de estas despertarem ainda bastante interesse, mas são os temas da fantasia, da mitologia ou da religiosidade. As histórias de amor assumem papel de destaque no cinema: vide filmes como Em nome de Deus, Lancelot, Escalibur e o mais recente Tristão e Isolda, de 2006. Poderíamos enumerar uma lista bastante vasta de outros filmes que tratam do mesmo assunto. Tal como o tema do amor, e sempre unida a ele, a temática da formação do cavaleiro e de suas aventuras adquirem um destaque impressionante junto ao público da televisão e do cinema. Enfim, inapelavelmente, a Idade Média do fantástico e da religião, do Graal e do amor, das grandes guerras e das heroínas como Joana D`arc, mostra-se no lado inverso ao que, por gerações, aprendemos nos bancos escolares.
Esse fascínio que a Idade Média tem exercido não se diferencia do que já fora em épocas anteriores, como no século XIX, por exemplo, quando se considerou este período como a infância das nações. Para os novecentistas, a Civilização Medieval foi um período de formação das nacionalidades europeias e uma era de refúgio romântico da racionalidade liberal da época da consolidação do capitalismo. Hoje, como no século XIX, a Idade Média desperta sentimentos que se revelam como um modo de nutrir os espíritos cansados das mazelas de uma sociedade disciplinada e individualista, com imagens fantasiosas e histórias fantásticas que fizeram parte apenas da literatura e da cultura oral dos homens medievais. Hoje, o fascínio pelo medievo não está na história dos homens medievais, de suas lutas, de seus problemas ou dos seus modos de vida. O encantamento está em Artur, o rei bretão que reunia seus cavaleiros em torno de uma mesa redonda, ou na desnecessária discussão sobre se o grande rei teve ou não uma existência real. Trata-se ainda de um olhar romântico sobre a Idade Média, mas, mesmo assim, um olhar continuador de um preconceito secular que mira o medievo como espaço de uma eterna dança de gnomos e como uma fantástica viagem no sentido da terra de Avalon.
É desse modo que o medievo “é objeto de uma série bastante grande de discursos” que circulam nas diversas mídias, nos dias de hoje, tais como, além de uma gama de curiosos, cineastas , esotéricos, jogos de computador 8, RPGs 9. Todos olhando para a Idade Média ainda com os olhos do presente (PEREIRA & GIACOMONI, p. 11, 2008).
A Igreja Católica, claramente identificada com a Idade Média tanto no senso comum, quanto na escola, é hoje o objeto das maiores críticas. Essas são oriundas de discursos científicos que proferem assertivas no sentido de propor modificações doutrinárias à Igreja, envolvendo questões como o fim do celibato dos sacerdotes e a aceitação de métodos contraceptivos. Ora, é evidente que tanto a primeira, quanto a segunda proposta de modificação implicam profundas discussões doutrinárias e mitológicas no âmbito da Igreja. Ao mesmo tempo, essa instituição recebe críticas fortíssimas, pelas mesmas razões anteriores e por outras, dos discursos que circulam nas telas de cinema, na literatura e na televisão. Indubitavelmente, o livro de Dan Braw, o Best-seller O código da Vince, e o filme nele inspirado, deram lugar a dúvidas significativas quanto às práticas da Igreja Católica ontem e hoje. De tudo isso, fica cada vez mais marcada a noção, construída no âmbito do discurso iluminista, de que a Idade Média fora uma época de trevas e obscurantismo, porque fora a época, por excelência, do domínio da Igreja Católica.
À tórrida corrente que se arvora contra a Igreja Católica, opõe-se uma Idade Média de fantasia, de lindas histórias de amor, elementos que certamente fizeram parte do imaginário dos homens medievais, mas que a pesquisa histórica somente encontra na literatura e nos relatos mitológicos.

O interior – a cultura escolar

A cultura escolar é constituída por diversas etapas da seleção de conteúdos, de métodos e de conceitos disponíveis em um imenso volume de história escrita criada pela historiografia. A cultura escolar não é somente produto da seleção que se faz a partir dos relatos disponibilizados pela pesquisa histórica, mas, muitas vezes, é mesmo produto da memória coletiva. Isto é, significados, imagens, ideologias presentes no ensino de História, não são, necessariamente, oriundos da pesquisa acadêmica ou dos livros de História; são apenas produtos da memória coletiva. Enunciados notadamente construídos no senso comum da nossa sociedade e que, contra todos os resultados de pesquisa, assumem papel de verdade científica no interior da cultura escolar.
Isso quer dizer que a cultura escolar talvez pouco tenha da história contada nos relatos acadêmicos e, talvez, muito tenha da história que circula pelas vielas da memória coletiva. No caso do ensino de Idade Média, isso é apenas em parte verdadeiro, pois a imagem obscura da Idade Média tanto tem origem na História Acadêmica, quanto no senso comum. De qualquer maneira, a cultura escolar continua a ser resultado de um intrincado processo de seleção que fazemos diante de um tenso jogo entre o que se escreve sobre o passado nos livros de História e o que se imagina do passado na memória coletiva.
Uma prova importante de que a cultura escolar é resultado desse duplo começo é o fato de que uma observação, pouco atenta ao cotidiano escolar pode mostrar que muitos professores têm pouca crença nos conteúdos ensinados na universidade, nos cursos de licenciatura em História. Conforme certa quantidade de professores de História, os conteúdos e as teorias aprendidas na universidade têm pouco valor pedagógico. A suspeita sugere que é preciso empobrecer os conteúdos da academia para ensinar aos estudantes da Escola Básica, fato que acaba por levar a um ensino de História baseado em clichês, já largamente ultrapassados e rechaçados pela historiografia. Assim, o que chamamos de cultura escolar é um emaranhado bastante complexo de discursos que buscam espaço, desde os relatos acadêmicos, passando pelos livros didáticos até os modelos cristalizados pela memória coletiva.
Em estudo recente 10 pude verificar que a disciplina escolar de História é, neste momento, objeto de importante discussão acerca das questões da diferença e da pluralidade cultural. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) da área de História, tanto do Ensino Fundamental, quanto do Ensino Médio, criam a necessidade da disciplina se voltar a temas e conteúdos que ultrapassem o tão criticado Eurocentrismo. Ao mesmo tempo, a lei 10.639, de janeiro de 2003, estabelece a obrigatoriedade, já constante na última Lei de Diretrizes e Bases (LDB – 9394/96), da inclusão nos currículos escolares das histórias da África, da cultura Afro-Brasileira e da história dos povos Indígenas, fato que revela um significativo corte na visão iluminista e eurocêntrica dos currículos de História, no Brasil.
A historiografia tem permitido também uma verdadeira revolução no âmbito da escrita da história, com consequências para a história ensinada na Escola Básica. Os livros didáticos, por exemplo, já estão procurando incorporar o estudo de fontes, a inclusão de conteúdos a respeito da América Latina e Pré-Colombiana, a história do Extremo Oriente, além de incluir objetos de estudos da vida cotidiana e das mentalidades. Isso quer dizer que, independente das críticas que se possam realizar quanto à qualidade da produção didática brasileira, o fato é que ela tem se voltado, de modo bastante significativo, às novas configurações historiográficas e aos apelos políticos das histórias e das culturas silenciadas pelo Eurocentrismo.
Na esteira dessas possibilidades abertas, o ensino de Idade Média na escola pode passar a ter um espaço bem mais amplo nas salas de aula, considerando a sua importância na formação da nossa civilização. Inegavelmente, a produção didática brasileira tem voltado os olhos para o medievo de modo bem menos preconceituoso nestes últimos anos. “As publicações parecem ter se voltado para a pluralidade das condições de vida na civilização medieval, ao invés de salientar apenas o papel da Igreja, das guerras e da peste” (PEREIRA & GIACOMINI, p. 40, 2008). Os livros didáticos de História têm se preocupado em mostrar que os acontecimentos precisam ser considerados pelo historiador, mas também pelo professor de História, no contexto singular no qual existiram, tornando o relato histórico menos moralista e menos centrado num ponto de referência a partir de onde se pode julgar moralmente as práticas sociais e os modos de vida dos homens do passado.
Essa revalorização da Idade Média que ocorre aos poucos nas escolas e nas publicações didáticas de História, entretanto, não é ainda o suficiente para redefinir o jogo de forças no interior do que chamamos de Dispositivo de Medievalidade (PEREIRA & GIACOMINI, 2008), na medida em que o medievo ainda é visto pelas novas gerações a partir daqueles clichês que referi no início desse artigo. Ou seja, a Idade Média da cultura escolar, apesar de todos os avanços no campo do currículo, do pensamento educacional e da historiografia contemporânea, continua a desenhar uma história centrada no olhar iluminista sobre ela. Ainda hoje, no ensino de História, a “missão civilizadora” do Europeu moderno e Iluminista parece dar o tom ao olhar que construímos sobre o medievo. Enquanto temos um movimento bastante significativo no sentido de redefinir os contornos de uma história que reconta os silêncios – exemplo da história da África –, a história medieval é um objeto de estudo pouco solene nas salas de aula, exceto quando encanta, por vezes, por aquilo que nunca foi, senão na imaginação dos homens do presente.
Destaco, de modo a exemplificar os argumentos acima, algumas das imagens que a escola ainda veicula sobre a Idade Média: a primeira imagem está ligada ao modo como o feudalismo ainda é tratado nos textos didáticos e na sala de aula, considerando o que se ensina quanto às variáveis espaço-temporais e às particularidades regionais; a segunda imagem tem a ver com a maneira como olhamos para a sociedade medieval; a terceira imagem diz respeito ao problema da cultura medieval, no sentido de questionar quais aspectos da cultura medieval são ensinados na escola.
O feudalismo é visto, em geral, como um modelo que abrange toda a Idade Média. Via de regra, ainda antes do estudo das invasões germânicas 11, as aulas de história medieval se iniciam com uma exposição sobre o assunto, dando a clara noção de que Feudalismo é idêntico a Idade Média. Neste caso, como nos demais, o recurso didático da generalização serve de elemento simplificador do relato histórico, reduzindo a Idade Média ao Feudalismo e, ao mesmo tempo, deixando de destacar as especificidades regionais do sistema feudal na Europa ou fora dela.
Além disso, a Idade Média é, assim, um momento exclusivo da história europeia. Outras sociedades que tiverem destacada organização social e política, e que se desenvolveram no mesmo recorte temporal que a Europa Medieval, como as civilizações ameríndias, nações africanas ou as civilizações do Oriente Extremo, não são consideradas como objeto de estudo. Os ameríndios, por exemplo, que são pouco estudados na escola, aparecem no currículo somente no momento da conquista da América.
As consequências, do ponto de vista da aprendizagem, são, pelo menos, duas: a primeira afirma um olhar eurocêntrico em relação aos outros povos; a segunda leva os estudantes a sempre buscar na realidade e no passado uma lógica, uma coerência e um padrão que não são próprios daquela realidade, senão que apenas do olhar presentista que esse tipo de ensino constitui.
O feudalismo confundido com a Idade Média é a generalização de um sistema que tem uma duração bem menor do que a própria Idade Média. A escola, assim, não ensina ao estudante apurar o olhar para ver o específico, a diferença, o contraste. O caso do feudalismo inglês, que poderia ser um exemplo de fácil compreensão para mostrar que esse sistema teve configurações diferentes nos diferentes espaços da própria Europa, não aparece senão com muito pouca incidência. O caso do feudalismo no sul da França, por seu turno, parece jamais ter sido objeto de análise, nem de uma mera citação em qualquer livro didático ou aula de História.
A caracterização da sociedade medieval é reduzida a um conjunto de relações definido e fechado que teria a duração de dez séculos e uma abrangência espacial de toda a Europa. A noção de que a sociedade medieval é uma sociedade de ordens é assumida pela aula de História como tendo ocorrido em toda período medieval e como se fosse um evento comum em toda a Europa. Além do mais, a divisão da sociedade medieval em oratores, bellatores e laboratores, é ensinada como se fosse uma realidade concreta, e não parte do discurso religioso e dos interesses ideológicos desse discurso. Ao contrário, essa divisão é concebida como uma verdade histórica criada pela pesquisa histórica.
A sociedade de ordens é considerada como sendo a sociedade que caracterizou a Europa medieval durante todo o período. As mudanças que ocorreram na Idade Média parecem não atingir a sociedade. Os estudantes são levados a olhar para uma série de mudanças como a urbanização, as Cruzadas, a arte românica e gótica, o comércio, mas as mudanças nas estruturas sociais não aparecem. Na verdade, esse ensino acaba por marcar a sociedade medieval como imóvel, e esta é sua principal característica, não importante à época ou à dinamicidade da vida medieval.
Os livros didáticos apresentam, quase sem exceção, três elementos da cultura medieval: a arquitetura românica e gótica; o trabalho dos monges copistas; o papel da Igreja na cultura. Dificilmente as publicações se referem a outros produtos da cultura dos homens medievais, exceto em raros casos. De um modo ou de outro, tudo o que se diz e escreve sobre cultura na Idade Média, nos livros didáticos e na escola, está, inexoravelmente, ligado à religiosidade e ao controle da Igreja. A consequência é a representação da Idade Média como uma época de pouca criatividade no campo da cultura e do conhecimento, em função do controle perverso e nefasto desta instituição. Aos estudantes, resta olhar para uma sociedade imóvel, sem qualquer dinamicidade interna e sem quaisquer linhas de fuga ou pontos de resistência.
A menção recorrente aos monges copistas cria a imagem de uma Idade Média da cópia. O que de valor se produziu na cultura medieval não teria sido nada além do que a perseverante preservação dos textos antigos, berço da civilização e referência para a reinvenção do mundo moderno, após os dez séculos de obscurantismo.
A Idade Média da cultura escolar mostra evidentes sinais de transformação, sobretudo no que concerne às publicações didáticas, as quais incorporam, de modo muito mais rápido, as novas urgências da historiografia, contrariamente à sala de aula, onde as mudanças ocorrem mais lentamente. De qualquer modo, o tom árido e seco, que por muito tempo tem caracterizado as representações da Idade Média na aula de História da Escola Básica, persiste, marcando fortemente o que se ensina sobre esse período da história, mantendo ainda a Idade Média como um dos espelhos que reflete a imagem distorcida dos homens ocidentais.

 

Images du Moyen Age dans la culture de l’école.

Résumé: L'article discute, généralement, le problème du Moyen-Age construit hors de l'espace universitaire, et particulièrement, la question de l'apprentissage du Moyen-Age à l'école primaire. L'article considère la spécificité de la culture scolaire et de l'enseignement de l'histoire à l'école, en mettant l'accent sur les limites et sur les particularités de l'enseignement dans l'espace universitaire. L'article fournit un cadre de la façon dont le Moyen Age a été vu par les manuels et les leçons de l'histoire, un contrepoint nécessaire pour  penser une Moyen Age de fantaisie et mythique qui transmet le sens commun de notre société à l’aide du cinéma, de la télévision ou des jeux sur ordinateur.


 Mots-clés: Moyen-Age, L'apprentissage de l'histoire , La culture scolaire.

 

1 Professor da área de Ensino de História na Faculdade de Educação da UFRGS, Doutor em Educação e Pós-Doutorado em Estudos Medievais. E-mail: niltonmp.pead@gmail.com

2 Sobre cinema ver a revista PEREIRA, Nilton Mullet (Org.); BALDISSERA, José Alberto (Org.). Idade Média e Cinema. Periódico. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2006.

3 Stealing Heaven é um filme dirigido por Clive Donner, de 1998, que conta a história do filósofo Pedro Abelardo e sua amada Heloisa.

4 Interessante referir o já bastante conhecido trabalho de Edward Said, editado pela primeira vez em 1978 e que discutiu a relação Ocidente e Oriente, salientando o modo como a sociedade Ocidental tem construído sua ideia de Oriente (SAID, 1996).

5 A perspectiva de análise em questão se constitui a partir das noções de verdade e poder elaboradas por Michel Foucault.

6 Ver PEREIRA & GIACOMONI, 2008. Nessa publicação argumentamos que o dispositivo de medievalidade se atualiza no espaço escolar, “uma vez que o modo como olhamos para a Idade Média vem sendo construído desde longa data através de discursos políticos, científicos e historiográficos. Isso nos permite afirmar que o modo como olhamos para a Idade Média, desde um olhar Iluminista, tem sido constituído no interior de um jogo de um dispositivo pedagógico, típico das instituições escolares, e um dispositivo de medievalidade que ultrapassa, ao largo, o discurso veiculado pelos livros didáticos sobre a Idade Média”.

7 O cinema tem sido pródigo na produção de representações sobre a Idade Média. Diversos temas da vida da civilização medieval são abordados por grandes produções como Cruzada, de Ridley Scott, até as inúmeras sequências da história da heroína francesa Joana D`arc. É importante pensar que essas produções cinematográficas são, em boa parte dos casos, o único acesso que a sociedade possui para conhecer o passado medieval. Apesar de reconhecermos, entretanto, a qualidade de muitos filmes e de compreender o caráter de obra de arte ou “industrial”do cinema, sabemos que as representações produzidas pelo cinema sobre o medievo precisam ser vistas sob o crivo da crítica historiográfica. Nos últimos tempos, seguindo o exemplo de Marc Ferro, em seu célebre Cinema e História (1992), diversos historiadores e professores de história têm se preocupado com o papel do cinema na construção da nossa memória histórica. Exemplo disso foi o ciclo História e Cinema, promovido pelo GT de Estudos Medievais da ANPUH-RS, em várias universidades do Rio Grande do Sul, desde o ano de 2001. Um dos resultados desses ciclos de estudos foi a publicação de um periódico contendo diversas análises e entrevistas sobre filmes que abordam a história medieval, em 2006. (Cf. PEREIRA, 2006).

8 A maioria dos jogos ambientados no medievo é ligada à construção de castelos ou cidades e à estratégia militar, tais como: Age of Empires II, Stronghold I e II, Knights of Honor, Medieval Total War, Cruzader Kings, etc. Existem também jogos que ambientam atividades políticas e mercantes, como o Guild I e II, e jogos em que os personagens voltam no tempo, como o Time Line.

9 Grande parte dos jogos de RPGs são ambientados no período medieval, principalmente devido ao imaginário místico atribuído ao medievo. Para jogos que envolvem guerreiros, arqueiros, magos, vampiros, princesas, castelos, terras e reinos longínquos, repletos de aventuras e mistérios, o “mundo medieval” é um prato cheio. Destacamos RPGs de tabuleiro, como Vampiro, Dungeons & Dragons e Ars Mágica; RPGs online, como Neverwinter Nights, Tíbia e Rune Escape; e até encontros de jogadores e admiradores do mundo medieval, destinados a reviver por alguns dias as formas de vida do medievo, como o Avalon e o Valinor.

10 O estudo se iniciou com uma longa investigação em livros didáticos editados no Brasil, enfocando temas e técnicas de ensino desde os anos 20 do século XX até o PNLD de 2008. A pesquisa tinha como título Ensino de História, Medievalismo e Etnocentrismo, seu resultado mais importante foi a publicação do livro Possíveis Passados: representações da Idade Média no Ensino de História . Recentemente, em estância como professor visitante na Universidad de Alcalá de Henares, Espanha, pude realizar uma breve mirada no acervo de livros didáticos da Comunidad de Madrid, na Biblioteca Nacional de Espanha, em Alcalá de Henares. Assim, surgiu um estudo comparativo entre os livros de texto espanhóis e como ensinam a Idade Média, e os livros didáticos brasileiros.

11 Notável o fato de que os povos germânicos ainda continuam a ser, além de pouco conhecidos, tratados com o conceito bárbaros, sem que ocorra uma explicação aos estudantes das razões pelas quais esses povos foram, por longo tempo, chamados de bárbaros. Ao menos em algumas publicações didáticas é possível verificar cuidado em utilizar a expressão “invasões germânicas”.

Referências:
CAZENAVE, Michel y POIRON, Daniel. El arte de amar en la Edad Media. Palma de Mallorca: Jose J. de Olañeta Editor, 2000.

CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, Rio de Janeiro, v. 5, n.11, 1991.

PEREIRA, Nilton Mullet & GIACOMONI, Marcello Paniz. Possíveis Passados: representações da Idade Média no Ensino de História. Porto Alegre: Editora Zouk, 2008.

PEREIRA, Nilton Mullet (Org.); BALDISSERA, José Alberto (Org.). Idade Média e Cinema. Periódico. São Leopoldo: Instituto Humanitas Unisinos, 2006.

SAID, Edward W.  Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente.   São Paulo: Companhia das Letras, 1996.