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Apresentação da Seção Temática - Norbert Elias e Educação

“As Ciências não se desenvolvem no vazio. [...]. Em suas causas e efeitos, o estado de desenvolvimento das ciências humanas, como o das ciências naturais, é característico de uma ação humana específica” (Elias, 1994bELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar , 1994b., p. 72). Tomando a ciência como resultado de ações humanas elaboradas por grupos de pesquisa e indivíduos com interesses específicos, as duas últimas décadas vêm desenhando um movimento heterogêneo e complexo de elaboração dos modos de produção do conhecimento, sobretudo na área das ciências humanas e sociais, com repercussão no campo da educação. Nessa dinâmica, um número crescente de pesquisadores e pesquisadoras de diferentes instituições nacionais e internacionais tem ampliado o conhecimento da área, buscando compreender as temáticas educativas e pautando suas investigações em conceitos e noções elaborados pelo sociólogo Norbert Elias.

O autor tem uma história de vida e uma profícua obra, marcada pelos acontecimentos sociais e históricos da sua época, qual seja, o século XX. A biografia de Elias nos informa que ele nasceu em Breslau (Alemanha), no dia 22 de junho de 1897. Filho único dos judeus abastados, Hermann Elias e Sophie Elias, teve uma educação erudita desde a infância. Estudou Medicina, Filosofia e Psicologia em Breslau, Freiburg e Heildeberg. Trabalhou com Alfred Weber e foi assistente de Karl Mannheim em Frankfurt. De tradição judaica, com a ascensão do nacional-socialismo alemão refugiou-se na França e na Inglaterra no final dos anos de 1930. O pai faleceu em 1940 e, posteriormente, a mãe foi assassinada em Auschwitz pelos nazistas (Elias, 2001).

Sua biografia apresenta um autor e um ser humano que passou toda a sua vida procurando compreender as relações entre indivíduo e sociedade, em toda a sua complexidade. Tal trajetória de vida marca a entrada tardia de Elias na vida acadêmica, pois somente em 1954, com quase 60 anos, é que Elias assumiu pela primeira vez uma cadeira de docente na Universidade de Leicester, Inglaterra. Posteriormente atuou como professor visitante em universidades na Alemanha, Holanda e Gana. Recebeu o prêmio Theodor W. Adorno em Frankfurt em 1977, por sua contribuição à Sociologia e pelo conjunto das suas obras. Retornou à Alemanha em 1979, quando atuou como professor na Universidade de Bielefield. Morreu em Amsterdã em 1990 (Veiga, 2005VEIGA, Cynthia Greive. Pensando com Elias as relações entre Sociologia e História da Educação. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes (Org.). Pensadores Sociais e História da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. P. 139-166.).

O tardio reconhecimento e celebração da obra de Elias, bem como seu lugar na Sociologia, fez com que ele fosse um outsider durante toda a vida, fato que impediu que a sua obra fosse discutida no contexto do seu tempo, alcançando visibilidade somente nos seus anos finais, ou seja, na velhice. Entre suas obras principais, citamos A sociedade de corte, O processo civilizador: uma história dos costumes (volume 1) (Elias, 1994a) e O processo Civilizador: Formação do Estado e Civilização (volume 2) (Elias, 1993).

Só muito recentemente - nos últimos 20 anos - é que os principais trabalhos de Elias começaram a ser publicados em língua portuguesa, favorecendo a apropriação e a disseminação de suas ideias em diferentes áreas de conhecimento no Brasil. Suas teorias se tornaram conhecidas em alguns cursos de graduação e se constituíram em referência teórica em dissertações, teses e publicações científicas, tratando dos mais variados temas, desde a constituição, o lugar e a relação entre os Estados nacionais nas sociedades modernas, até os processos de violência no esporte, e, mais recentemente, no campo da educação (Waizbort, 2001WAIZBORT, Leopoldo. Elias e Simmel. In: NEIBURG, Frederico et al. (Org.). Dossiê Norbert Elias. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. P. 89-111.).

Nesse sentido, destacamos que os conceitos e temas tratados por Elias extrapolam a agenda de estudos da Sociologia, permitindo-nos e, ao mesmo tempo, exigindo um trabalho interdisciplinar. Como apontado em sua obra, para Elias (2001), todos os fenômenos e processos sociais envolvendo pessoas são passíveis de investigação. Assim, tal abordagem interdisciplinar nos coloca perante o desafio e a necessidade de investigar os fenômenos educativos que envolvem os indivíduos e seus grupos em diferentes contextos e dimensões da vida social.

Essa perspectiva impõe fazer um contraponto de suas ideias com os paradigmas daquilo que se considera científico, no que diz respeito aos métodos das ciências exatas e naturais. Sobre o tema, Elias (2005ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.) expressou reiteradamente a necessidade do trabalho investigativo, isto é, de superar polaridades como aquelas estabelecidas entre indivíduo e sociedade, passado e presente e/ou a relação causa e efeito, difundidas pelas Ciências Modernas. Complementarmente, desenvolveu uma sociologia fundamentada na concepção de que uma sociedade é formada por nós e pelos outros, pois “[…] aquele que estuda e pensa a sociedade é ele próprio um dos seus membros. […] A sociedade, que é muitas vezes colocada em oposição ao indivíduo, é inteiramente formada por indivíduos, sendo nós próprios um ser entre os outros” (Elias, 2005, p. 13).

Nesse contexto, Elias nos convida a refletir e sugere outra reorientação teórico-metodológica no campo das ciências sociais e humanas, ao discutir uma teoria reducionista do conhecimento, que toma o sujeito num vácuo de eu sem nós, você ou eles. Portanto, ao adotar a perspectiva sociológica figuracional, elaborada por Norbert Elias, somos desafiados a romper com os modelos prévios e transitar da imagem do homo clausus - “personalidade fechada”, isolado da sociedade - para a imagem do Homines aperti - “personalidade aberta” - que constitui com os outros uma rede de interdependência, uma estrutura de pessoas mutuamente orientadas e dependentes entre si (Kirschner, 1999KIRSCHNER, Tereza Cristina. Lembrando Norbert Elias. Textos de História, Brasília, v. 7, n. 112, p. 27-58, 1999.).

A percepção sociológica de Elias nos inspira a buscar nos pressupostos da Sociologia Figuracional ou processual diferentes investigações, tais como a metáfora de uma rede, utilizada pelo autor. As pesquisas tendem a se constituir, pois,

[...] além de uma ligação de fios individuais; e, no interior do todo, cada fio continua a constituir uma unidade em si; tem uma posição e uma forma singulares dentro dele [...]. É assim que efetivamente cresce o indivíduo, partindo de uma rede de pessoas que existiam antes dele para uma rede que ele ajuda a formar (Elias, 2001ELIAS, Norbert. Norbert Elias por Ele Mesmo. Rio de Janeiro: Zahar , 2001., p. 35).

Sendo assim, constituímo-nos em uma rede de pesquisadores e pesquisadoras que estamos formando e nos formando em parceria, ao longo de vinte anos, tematizando as tensões e as narrativas dos processos formativo-educativos vividos em nossas sociedades recentes. Por meio desta seção temática, objetivamos contribuir no refinamento de construções teórico-metodológicas que enriqueçam e ampliem o trabalho investigativo no campo da educação. Sob tal expectativa, reunimos seis artigos articulados em torno dos pressupostos da Sociologia Figuracional, que expressam diferentes possibilidades de análises dos processos educativos e, ao modo de Elias, tentam dar respostas aos fenômenos aqui investigados.

Nessa direção, abrimos esta seção temática com o artigo intitulado Sexualização e erotização: emancipação e integração do amor e do sexo, de autoria de Cas Wouters. Apoiando-se, principalmente, nos conceitos de balança de poder e informalização, as reflexões desenvolvidas no artigo levam a observar importantes mudanças ocorridas nas relações românticas e sexuais entre os jovens, considerando os códigos sociais predominantes entre homens e mulheres, pais e filhos, desde 1880.

A pesquisadora Cynthia Greive Veiga discute, no artigo Crianças Pobres como Grupo Outsider e a Participação da Escola, a elaboração sócio-histórica das crianças pobres como grupo outsider e a participação da escola nesse processo, a partir da figuração estabelecidos-outsiders, paradigma empírico desenvolvido por Norbert Elias, com o objetivo de problematizar as relações de poder. Por meio de pesquisa documental e investigação histórica, a autora focaliza a província/Estado de Minas Gerais no século XIX e início do XX, demonstrando a participação da Escola pública na produção da infância pobre como grupo inferior.

No artigo intitulado Memórias da Infância e da Educação: abordagens eliasianas sobre as mulheres, Magda Sarat e Miria Izabel Campos, apoiadas nas teses eliasianas, especialmente no estudo El cambiante equilíbrio de poder entre los sexos (Elias, 1998ELIAS, Norbert. El Cambiante Equilíbrio de Poder entre los Sexos. In: WEILLER, Vera (Org.). La Civilización de los Padres y Outros Ensayos. 1. ed. Colombia: Editorial Norma 1998. P. 249-289.) e na metodologia da história oral, buscam nas memórias de infância de mulheres, professoras de crianças - nascidas entre 1950 e 1970 -, a formação e a educação nos espaços privados e domésticos. Apontam que a escolha profissional tem vínculos estreitos com a educação feminina, normatizada por regras de controle e civilidade para as mulheres.

Assumindo como fonte a legislação estadual, os impressos pedagógicos, os manuscritos da administração escolar, as notícias do Jornal de Piracicaba e as bibliografias especializadas, Tony Honorato sistematiza reflexões sobre a Reforma da instrução pública paulista, dirigida por Sampaio Dória, em 1920. Como sugere o título do artigo - A Reforma Sampaio Dória: professores, poder e figurações -, os conceitos de figuração e de poder propostos por Norbert Elias constituem a referência de análise dos dados coletados, indicando que a Reforma de 1920 se constituiu em uma rede de pessoas interdependentes e seus desdobramentos.

Já os pesquisadores Reginaldo Célio Sobrinho, Maria das Graças Silva Carvalho de Sá e Edson Pantaleão, em O Jogo das Garantias dos Direitos Sociais das Pessoas com Deficiência, se debruçam sobre o modelo de jogo, elaborado por Elias (2005ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.), objetivando compreender a força relativa das instituições privadas especializadas em Educação Especial, na concretização dos direitos sociais das pessoas com deficiência. Indicam que o foco dessas instituições privadas especializadas no contexto das políticas de educação inclusiva fundamenta-se em dois dispositivos interdependentes: 1) a produção e a disseminação do conhecimento sobre os modos de intervenção com as pessoas em situação de deficiência, numa perspectiva médico-clínica, e 2) a face assistencialista do liberalismo econômico e político que orientou a consolidação do Estado Moderno.

Finalizamos a seção temática com o artigo Os Corpos de Elias: a concepção de corpo e educação a partir de três trabalhos de Norbert Elias, de Ricardo Lucena, que desenvolve reflexões sobre como tratar a relação entre corpo, educação e civilização a partir da perspectiva colocada por Elias. As discussões empreendidas evidenciam que corpo e educação constituem um nexo civilizatório que parte da infância e chega à velhice, em uma forma contínua e que se complementa. O autor nos alerta para a necessidade de não tratar o corpo como um fenômeno isolado, mas como corpos que são construídos e complementados durante toda a vida do(s) indivíduo(s) em sociedade.

A presente seção temática pretende trazer para o campo educacional a abordagem eliasiana, com vistas aos inúmeros desafios que estamos sujeitos a enfrentar, propondo outras leituras e mudanças de foco na área e nos processos de construção do conhecimento. Afinal, nos termos de Elias (1994bELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar , 1994b., p. 114), à medida que nos tornamos “[...] mutuamente dependentes, como especialistas deste ou daquele tipo, nessas redes de funções distintas, tornou-se cada vez mais necessário harmonizar funções e atividades”, de forma que possamos analisar, investigar e compreender as diferentes direções que as investigações em educação estão tomando, nos distintos contextos acadêmicos.

Agradecemos aos pesquisadores e pesquisadoras que colaboraram com a produção desta seção temática, possibilitando o (re)conhecimento das elaborações eliasianas e suas contribuições no campo da educação, em distintas e profícuas direções.

Desejamos uma ótima e proveitosa leitura!

Referências

  • ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, volume 2: formação do estado e civilização. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar, 1993.
  • ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador, volume 1: uma história dos costumes. Tradução de Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Zahar , 1994a.
  • ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar , 1994b.
  • ELIAS, Norbert. El Cambiante Equilíbrio de Poder entre los Sexos. In: WEILLER, Vera (Org.). La Civilización de los Padres y Outros Ensayos. 1. ed. Colombia: Editorial Norma 1998. P. 249-289.
  • ELIAS, Norbert. Norbert Elias por Ele Mesmo. Rio de Janeiro: Zahar , 2001.
  • ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
  • KIRSCHNER, Tereza Cristina. Lembrando Norbert Elias. Textos de História, Brasília, v. 7, n. 112, p. 27-58, 1999.
  • VEIGA, Cynthia Greive. Pensando com Elias as relações entre Sociologia e História da Educação. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes (Org.). Pensadores Sociais e História da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. P. 139-166.
  • WAIZBORT, Leopoldo. Elias e Simmel. In: NEIBURG, Frederico et al. (Org.). Dossiê Norbert Elias. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2001. P. 89-111.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2017
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