Karl-Heinz Göttert. Neues Deutsches Wörterbuch. Köln: Helmut Lingen Verlag, 2007 ( 1150 p.)

    Félix Bugueño Miranda

     


    Pode-se afirmar que a lexicografia alemã de orientação semasiológica divide-se entre aqueles dicionários que seguem o formato Duden (o Deutsches Universalawörterbuch, por exemplo) e aqueles que não seguem. A obra que comentamos nessa oportunidade, o Neues Deutsches Wörterbuch (2007), doravante nDWtb (2007), corresponde a esse segundo grupo, mas não deve nada à “família Duden”, legitimando-se por méritos próprios.

    A análise considerará os componentes canônicos do dicionário, assim como o “outside matter”. 

    Para facilitar a análise, seguir-se-á a progressão natural do objeto dicionário. Nesse contexto, cabe assinalar que o “front matter” é extremamente simples. Consta de um manual de instruções (“Zum Gebrauch des Wörterbuches”) composto por três parágrafos. O caráter singelo do manual de instruções está plenamente justificado, já que os verbetes apresentam um programa constante de informações extremamente simples, estruturado rigorosamente na seqüência do comentário de forma antecedendo o comentário semântico. Ao manual de instruções, segue um “Inhaltsverzeichnis” que, basicamente, apresenta o conteúdo do “back matter”. O “back matter” consta de algumas considerações gerais sobre a ortografia do alemão e, como não poderia deixar de estar presente, contém também uma “kleine Grammatik des Deutschen”, um segmento quase canônico nos dicionários alemães, que ora aparece no “front matter”, ora aparece no “back matter”. Na nossa opinião, o “back matter” é o lugar mais apropriado para esse segmento. A última parte do “front matter” está reservada para um longo “Abkürzungsverzeichnis”, no qual é possível encontrar marcações tão surpreendentes como “altägypt.” (=altägyptisch), “chil.” (=chilenisch) ou “ghanai.” (=ghanaisch). Embora a correlação entre a palavra por extenso e a sua abreviatura seja clara, não se compreende muito bem por que a disposição da informação é primeiro a palavra por extenso e depois a abreviatura, quando é a abreviatura encontrada na consulta de um verbete que leva a consultar a que palavra corresponde.

    No plano macroestrutural, a primeira coisa a ser comentada é o fato de o dicionário adotar rigorosamente uma estrutura lisa, o que, para o consulente brasileiro (embora não seja ele o público-alvo primário da obra), é sempre algo bem-vindo, considerando que a práxis lexicográfica alemã prefere uma estrutura de nicho ou ninho léxico. Assim, por exemplo, o primitivo Koalition e seus derivados Koalitionsfreiheit, Koalitionskrieg, Koalitionspartei, Koalitionspartner, Koalitionsrecht, Koalitionsregierung e Koalitionsvertrag  constituem verbetes independentes.  

    Uma amostra das letras “A”, “K” e “T” revela que, do ponto de vista da definição macroestrutural qualitativa, o dicionário optou por lematizar elementos binários. Por exemplo, ao lema tief seguem os lemas tief bewegt, tief gefühlt, tief gehend, tief greifend, tief liegend, tief stehend, etc. A razão dessa lematização “sui generis” está em direta relação com a prescrição ortográfica, já que a reforma ortográfica admite tanto as formas por separado como em composto (ou seja tief bewegt ou tiefbewegt). Considerando que a consciência lingüística ainda deve perceber o particípio adjetivo como um modificador “ad hoc” de tief, o dicionário optou, corretamente, pela lematização binária, embora o comentário de forma de cada um dos verbetes chame a atenção para o fato de existir a possibilidade do composto.

    Ainda no plano macroestrutural, nDWtb (2007) apresenta a curiosidade de alternar entre “soluções polissêmicas” e “soluções homonímicas”. Já é sabido que nem sempre é possível a estrita observância de princípios etimológicos para optar entre uma lematização polissêmica (a significação completa se deriva de uma única base etimológica e se agrupa, portanto, em um único lema) ou uma lematização homonímica (dois ou mais verbetes apresentam um mesmo signo-lema, por se tratar de bases etimológicas diferentes). Nesses casos, o agrupamento ou ordenação das informações obedece a outras razões. A questão central é manter a homogeneidade do critério empregado. Em nDWtb (2007) encontram-se soluções polissêmicas (por identidade etimológica) e soluções homonímicas (aparentemente por flexão diferente e também por bases etimológicas diferentes). Exemplos de soluções polissêmicas são: Kater “(...) 1) eine männliche Haus- oder Wildkatze 2) [ugs.] körperliches Unwohlsein (...)” e Tilsiter “(...) 1) Einwohner der Stadt Tilsit 2) Käsesorte”. No entanto, em casos como Kaki(1), Kaki(2), Kalkül(1), Kalkül(2), Terrakota(1), Terrakota(2), Thai(1), Thai(2), Tiefdruck(1), Tiefdruck(2), nos quais a base etimológica é claramente a mesma, nDWtb (2007) optou por uma solução homonímica. A única causa que parece explicar essa decisão é o fato de haver uma diferença morfológica, mais precisamente por mudança de flexão de gênero ou número de determinadas acepções. Eis um exemplo:  Kaki(1) “(ka|ki) das; -(s),-; auch Khaki; [pers.] eine gelbliche Erdfarbe” , Kaki(2) “(ka|ki) der; -(s) auch Khaki; [pers.] ein Stoff in gelblichen Braun, der zur Herstellung von Tropenuniformen verwendet wird”.  Há duas coisas a comentar em relação a essa decisão. Em primeiro lugar, surpreende constatar que, contrariando a práxis mais geralmente aceita, não se marcou a lematização homonímica com um expoente (o que explica porque os lemas transcritos acima aparecem com os expoentes entre parênteses). Em segundo lugar, teria sido perfeitamente possível manter a solução polissêmica, salientando, nas acepções pertinentes, mudança de gênero ou número. Acreditamos que essa decisão seja o resultado do desejo de oferecer um “Überblick” do comentário de forma, o que é uma decisão que merece ser respeitada. Finalmente, há também os casos em que a solução homonímica se deve, de fato, a bases etimológicas diferentes, tais como s.v. Karre(1), Karre(2).   

    Outro aspecto a ser destacado (e de certa forma ligado à situação exposta em relação a tief) é a observância do princípio de “type” / “token”. Esse princípio metalexicográfico leva a diferenciar entre formas preferenciais (canônicas para efeitos de lematização) e formas de menos prestígio. No caso de tief  há dois “types”, ou seja, ambas as formas possuem exatamente o mesmo prestígio. Nos casos de Tip / Tipp, Toe-Loop / Toeloop e Trabi / Trabbi, no entanto, o dicionário distingue entre as formas preferenciais e as de menor prestígio, através de uma lematização que leva, por procedimento remissivo, à forma canônica. É o que acontece, por exemplo, s.v. Trabbi “(Tra|bi) der; -s, -s; siehe: Trabbi”. Ao contrário do que se possa pensar, a distinção “type” / “token” não é óbvia em todas as tradições lexicográficas, de modo que, quando se estabelece tal diferença, o usuário é munido de informações essenciais. Ganha o consulente ao ter à sua disposição um segmento informativo altamente relevante e ganha o dicionário, porque demonstra possuir um alto poder de confiabilidade.

    Seguindo uma tradição já clássica na metalexicografia alemã, nDWtb (2007) lematiza também nomes próprios e siglas, tais como Amnesty International, Azoren, Jesus Christus, Kapitol, Tchad, AG, KGB, TASS, TCS e THW. Embora seja possível pensar que o dicionário é um diretório ordenado alfabeticamente para se procurar séries de letras, é para se perguntar se os nomes próprios e as siglas não ficariam melhor dispostos em ordenações macroestruturais secundárias, já que, afinal de contas, dictionarium significa, etimologicanmente, “lugar das palavras” e dificilmente poder-se-á argumentar que os nomes próprios e as siglas sejam “palavras”, entendidas como signos categoremáticos e sincategoremáticos. 

    Embora não seja possível estabelecer quais os critérios de seleção macroestrutural qualitativa em nDWtb (2007), uma análise superficial possibilita perceber que o dicionário está aberto ao vocabulário antiquado, posto que lematiza formas como Tanzkarte e Töchterschule, ambas marcadas como “veralt[et]” [desusado].

    A análise no plano microestrutural (comentário semântico), por outro lado, começará com algo relacionado à macroestrutura. A leitura de diversos intervalos lemáticos permitiu constatar um fato léxico que é fundamental para o germanista brasileiro, isto é, a lematização de “realia”, ou seja, de unidades léxicas privativas da “deutsche Kulturlandschaft”, ou, para falar em termos humboldtianos, da “deutsche Weltanschauung”. Do ponto de vista da “Darstellung des deutschen Wortschatzes” que o dicionário almeja fazer, assim como do usuário primário que o mesmo almeja atingir, o fato não tem nada de particular. No entanto, para o germanista brasileiro tem uma importância fundamental, sobretudo no âmbito da atividade tradutória, já que essas unidades constituem casos de equivalência zero na outra língua (dito em outros termos, não há equivalentes no português para essas unidades léxicas). O mérito de nDWtb (2007) é ter gerado definições extremamente claras em todos os casos analisados. Essa é uma “conditio sine qua non” para poder oferecer soluções tradutórias satisfatórias (que são sempre “ad hoc”, naturalmente). Exemplos de “realia” são: Ältestenrat “(...) 1) aus 23 Mitgliedern des Deutschen Bundestages bestehendes Organ zur Unterstützung des Bundespresidenten (...)”, Ampelkoalition “(...) Koalition aus SPD (rot), FDP (gelb) und Grünen (grün) (…)”, Amtsdeusch “(…) umständliche, unanschauliche, unlebendige Ausdrucksweise”, Kaderschmiede “(…) Politik in der ehemaligen DDR Bezeichnung für eine Organisation, in der Parteifunktionäre ausgebildet wurden”, Kaltmiete “(…) Ausdruck für einen Mietpreis ohne Nebenkosten”, Kampfgruppe “(…) 2) Geschichte, Militär in der ehemaligen DDR Ausdruck für eine bewaffnete, aus Arbeitern bestehende Miliz”. No que diz respeito à qualidade das paráfrases explanatórias, a teoria metalexicográfica ainda carece de uma teoria da definição (que, na nossa opinião, deve se sustentar em um tripé, formado por uma taxonomia de definições, um patter sintático e uma teoria semântica). Por isso, muitas definições só podem ser avaliadas “ad hoc”. Assim, por exemplo, a definição de Amtsdeusch “(…) umständliche, unanschauliche, unlebendige Ausdrucksweise”, que corresponde a um sintagma nominal composto por um núcleo e três modificadores adjetivais (e que parece um procedimento “pouco ortodoxo”) caracteriza muito bem os traços semânticos da entidade nominal. Nota-se uma redação um tanto intuitiva, mas eficaz. Outros verbetes que apresentam uma boa definição são Altkanzler, Altmeister e Tafelmusik. Como premissa básica de análise, assume-se que uma boa definição deve ser intensional e extensionalmente balanceada. Isso significa que deve apresentar os traços que permitam a sua apropriada conceitualização (intensionalidade), mas, ao mesmo tempo, a sua formulação deve permitir “reconhecer a coisa” na realidade extralingüística. A aplicação desses princípios permitiu detectar também definições deficitárias, tais como Anakonda “(...) südamerikanische ungiftige Riesenschlange”, Boa “(…) 1) eine Riesenschlange (…)”, Bockwurst “(…) eine Brühwurst”, Hering “(...) 1) in allen Meeren vorkommender Fisch, der zum Laichen in Küstennähe kommt (Clupea harengus) (…)” e Kabeljau “(…) Biologie groβer See- und Speisefisch des Nordatlantiks”. A definição de Anakonda é um bom exemplo do exposto acima. Em primeiro lugar, do ponto de vista intensional, o adjetivo “ungiftig”, embora correto, é um desacerto, já que leva à implicatura de ser esse réptil “harmlos”. De fato, uma Anakonda é “gefährlich”. Do ponto de vista extensional, por outro lado, a sua caracterização como “Riesenschlange” é também correta, mas não permite um efetivo “reconhecimento da coisa”, quando comparado, por exemplo, com Boa. Em defesa de nDWtb (2007), é necessário salientar que plantas e animais (assim como outras categorias) apresentam uma dificuldade intrínseca no momento de serem definidos. A incorporação de elementos enciclopédicos na redação das paráfrases, assim como o emprego de gravuras (dispostas estrategicamente e suficientemente elucidativas) podem ajudar muito a melhorar a qualidade dessas definições. Ainda no âmbito da definição, há verbetes que apresentam distinguidores semânticos ou incrementos contextuais que ajudam a compreender melhor as particularidades de uma acepção. Exemplos de emprego desses mecanismos semânticos são: Abbau “(...) 1) (Gebäude etc.) Abbruch; Demontage 2) (Mineralien etc.) Förderung 3) Chemie (Verbindungen etc.) Aufspaltung; Zersetzung 4) (Preise etc.) Herabsetzung; Reduzierung”, Tafelwasser “(...) in Flaschen gefülltes Mineralwasser (eigentlich zur Mahlzeit an einer festlichen Tafel)”, e Tagelöhner “(…) Bezeichnung für einen Arbeiter, der täglich seinen Lohn erhält (und auch täglich entlassen werden kann)”.  

    A única decisão que lamentamos em nDWtb (2007) é o fato de não apresentar a valência nos verbos. Em uma língua como o alemão, esse segmento informativo microestrutural é fundamental, não importando se o dicionário foi desenhado para auxiliar o falante nativo ou não.

    No que diz respeito ao comentário de forma, já foi mencionado que ele é extremamente simples e que contém todos os segmentos informativos microestruturais que são considerados como “canônicos” na tradição lexicográfica alemã. Apresentamos o seguinte verbete como exemplo: “Tante-Emma-Laden (Tan|te-Em|ma-La|den) der; -s; -Läden; Bezeichnung für ein kleines Einzelhandelsgeschäft”. O comentário de forma apresenta a separação silábica, o gênero, o morfema do genitivo e o plural (muito bem representado pela forma  -läden com o respectivo “Umlaut”).

    nDWtb (2007) apresenta um emprego moderado de procedimentos medioestruturais, como demonstrou-se já através da distinção entre “type” / “token”  em Trabi / Trabbi. Em todos os casos de procedimentos medioestruturais, há uma clara correlação entre o impulso e a meta de referência, ou seja, há uma relação entre a razão que desencadeia a remissão e a informação que o consulente acaba encontrando na meta de referência.

    Em síntese, nDWtb (2007) é uma aparição muito bem-vinda na “deutsche Wörterbuchlandschaft”. As eventuais deficiências apontadas ao longo da resenha são perfeitamente passíveis de correção e derivam, em parte, de problemas ainda não suficientemente resolvidos pela teoria metalexicográfica, como já foi comentado. A única modificação urgente, na nossa opinião, é a explicitação da valência. O germanista brasileiro poderia tirar muito proveito de sua consulta.

     

    Félix Bugueño Miranda

    Instituto de Letras / UFRGS, Av. Bento Gonçalves 9500, bairro Agronomia, 91501-970 Porto Alegre (RS) Brasil; tel; 00-55-51-33086695; e-mail: felixv@uol.com.br