Literatura e luz: iluminação elétrica, teatro e o filme expressionista
recebido em 12/09/2010 e aceito em 04/10/2010
1 Introdução
2 Teatro e luz
3 Da aurora à meia-noite
ABSTRACT
This article discusses the influence of electric illumination on theatre and the so called expressionist film. It starts with a short historical overview and will then argue that the only film with a narrative as well as a visual design in expressionist tradition is From Morn to Midnight, based on a play written in 1912 by Georg Kaiser and released in same year (1920) as its legend counterpart The Cabinet of Caligari. But different then Caligari or many other famous German silent movies from the 1920s it is not located in a romantic shadow world, syntactically created by lightning effects, but renounces the dark and spooky irrational in favor of an urban environment in the early twentieth century: a story of money, erotic seduction, escapist fantasies, eccentric bohemian life, crime and rapid alteration of scenes.
Keywords:lightning; theatre; expressionism; From Morn to Midnight.
O lema de nossa abordagem, literatura e luz, tem seu ponto de partida na famosa frase de Marshall McLuhan na qual ele diz que “a light bulb creates an environment by its mere presence”,[1] atribuindo assim ao medium, compreendido por ele de forma abrangente e incluindo, além da rede elétrica e media convencionais como filme ou televisão, também as estradas e as redes ferroviárias, em si um papel transformador. Assim, “the medium is the message” afirma que os conteúdos mediais, no sentido ideológico ou político, estão potencialmente disponíveis em qualquer forma medial e cabe entao à própria invenção medial o papel central na reconfiguração das ordens sociais, entre as quais encontram-se a área literária como forma especifica do campo artístico.
Um tal olhar medial faz jus a um crossover de temáticas, análises e abordagens tão característicos no âmbito dos estudos comparatistas. Esta diversidade nasce obviamente em parte já do próprio conceito de luz, que pode ser compreendida da forma já citada por McLuhan e conseqüentemente poderíamos nos debruçar sobre a massificação social no inicio do século XX quando a rede elétrica se consolida: instalam-se três turnos de trabalho nas fábricas, acontece a invasão dos centros urbanos com signos luminosos se propagando, surgem os próprios elétricos ou bondes, constata-se um boom nos media impressos via novas máquinas fomentadas pela rede elétrica e o cinema apenas se instala definitivamente e alcança uma penetração maciça a partir da eletrificação das salas de projeção. Todos estes elementos marcam não apenas o ambiente social mas também os romances centrais das vanguardas como Ulisses, Berlim Alexanderplatz ou Manhatten Transfer, tanto em termos temáticos [2]bem como no sentido estrutural. Não por acaso McLuhan, professor de literatura, viu em James Joyce o captador destacado das transformações mediais, sociais e comunicativas na virada do século. A referência à luz revela-se explicitamente em construções como o “Modelador de Luz e Espaço” de Maholy-Nagy, na definição que Walter Ruttmann deu a seus filmes abstratos como “pintura com a luz” ou na semântica dos Farbenlichtspiele ou “jogos de luzes coloridos” de Ludwig Hirschfeld-Mack, mas também precisa-se levar em conta o simples fato de que inicialmente, na Alemanha, o cinema se chamava Lichtspiel, ou seja, jogo de luz. Não surpreende portanto que críticos como Frances Guerin, em A Culture of Light denominam todo o período dos anos 20 e 30 do século passado como a cultura da luz.[3]
Evidentemente o eixo literatura e luz abre possibilidades de outras abordagens com diferentes focalizações: pode-se pensar ser a luz ou iluminação como motivo literário, na pintura renascentista com sua distribuição luminosa regular e equilibrada como paralelismo à construção estética do teatro clássico, o chiaroscuro na pintura de um Rembrandt como fonte de inspiração para diversos autores românticos e seus mundos entre o fantástico-ameaçador e o cotidiano “iluminado” burguês. Ambos, tanto a literatura romântica quanto a pintura de Rembrandt, se tornariam mais tarde ainda referência para o chamado cinema expressionista alemão com seu enfoque na iluminação parcial e indireta bem como sua inclinação para motivos, personagens e narrativas românticas. Se olhamos para a luz no contexto dos espaços públicos, a iluminação progressiva de ruas e espaços públicos nos séculos XVII e XVIII, é visto por Gaston Bachelard [4] sob a perspectiva de vigilância e controle. Talvez por isso virou um dos lugares preferidos para enforcamentos na revolução de 1789 e posterior, em 1830, objeto de destruição, referência presente na canção revolucionaria mais famosa Ca ira onde se exclama: “les aristocrates à la lanterne!”.
Também faz parte do universo luminoso a passagem ao longo do boulevard iluminado como “espaço interior” no sentido benjaminiano [5] que, seguindo Baudelaire e o dandy, criou o flâneur metropolitano cuja maneira síncope de caminhar e percepção contra-rítmica tentam “ganhar do corpo urbano” [6] “metáforas absolutas da vida antagônica em si do vir e desaparecer, do nascimento e da morte, da redenção e do declínio”.[7] No campo religioso ela representa, conforme Walter Sparn, [8]a metáfora teofórica em si, não apenas no Gênesis como também na arquitetura: as catedrais góticas foram construídas arquitetonicamente como mediadoras da luz verdadeira: o abe Suger (1081-1151), construtor da catedral de Saint-Denise, objetivava uma arquitetura “na qual o espaço interno pode ser iluminado por inteiro pela maravilhosa luz contínua” [9] um espaço-luz onde deve convergir diretamente o dia profano para a lux divina. Lux inter omnia corporalia maxime assimilatur luci aeterni, esta frase de Bonaventuras (1221-1274), pode ser lida como manual da arquitetura das catedrais e corresponde, na comunicação escrita, a textos do século XIII como “Das fliessende Licht der Gottheit” ou “A luz fluida da Divindade” da mística Mechthild von Magdeburg. E poderíamos ainda mencionar a escrita da luz, ou seja, a fotografia e suas diversas interligações com a literatura, para citar apenas algumas das formas e constelações possíveis do título literatura e luz. O trabalho a seguir analisa, dentro do vasto campo traçado aqui, um aspecto especifico, a iluminação no teatro e sua influência sobre o chamado filme expressionista, ou seja, ele se movimentará sobretudo no âmbito da luz como fonte de iluminação e “personagem” adicional nas encenações visuais.
Iniciamos com dois exemplos concretos. Katrin Brack torna o cenário do palco em um espaço no qual o visual emerge do material. Com isso, ela rompe com a ideia de que a aplicação de efeitos luminosos servem, sobretudo, como ilustração da ação e dos personagens: ela cria um espaço de luz, a partir do qual a história ou narrativa precisa se desenvolver e assim não se submete a uma mera função metafórica.
O artista James Turrell não apenas faz instalações à base de luz como também insere seus espaços iluminados no âmbito do teatro:
1994- iluminação de James Turell
objetivando refletir a respeito da “reality of transcendental experience”, [10] não tanto no sentido religioso mas como experiência de travessia referente ao espaço onde a luz ideoretinal, a luz ou cor que possa surgir no campo da visão na ausência de um estimulo sensorial, e a mínima da luz externa tornam-se indistinguíveis e assim faz-se necessário um reganho do espaço perceptivo. Para ele, luz é tão essencial quanto o ar e perder a capacidade de sentir a luz é como perder a capacidade perceptiva por completo. Turell assim objetiva, através de sua iluminação, uma recuperação do espaço perceptivo, tornando o olhar do olhar o elemento constitutivo na encenação teatral.
Um retrato da realidade teatral por volta de 1800 ilustra claramente como a iluminação do palco bem como seu papel evoluiu de um precário elemento de apoio para um elemento constitutivo da encenação.
Aqui, a luz de vela é instalada na margem frontal, iluminando a cena de baixo para cima e forçando os atores a vir à frente do palco para serem vistos. Também o espaço reservado para os espectadores é – pelo menos parcialmente – iluminado o que resulta, conforme retratos da época, em diversas ações paralelas ao espetáculo como conversas e outras atividades.
Esta tradição teatral sofre uma significativa ruptura durante o século XIX. No âmbito alemão, podemos apontar para as encenações de Richard
que, para alcançar o impacto de seu Gesamtkunstwerk, esconde a orquestra em um vale e deixa o publico no escuro para assim gerar uma intensidade até então desconhecida da ação no palco, reforçado por uma iluminação a gás a partir de diversos pontos e preparando desta maneira as típicas configurações das salas de cinemas algumas décadas mais tarde.
A primeira artista a integrar a luz elétrica como elemento cenográfico foi a dançarina americana Loie Fuller. Nascida nos Estados Unidos, ela se mudou para Paris e foi amiga de artistas como Malarmee ou o pintor Henri de Toulouse-Lautrec. Fuller realizava uma união entre suas coreografias e trajes confeccionados em seda iluminados por luzes multicoloridas.
Paralelo a eletrificação das salas de cinema, também o teatro dos anos 10 e 20 do século XX incorporou as possibilidades que a então nova iluminação elétrica proporcionava. Era sobretudo o paralelismo de espaços feitos de luzes variados que fascinou os diretores e seus técnicos. Aqui um exemplo do teatro de Erwin Piscator.
Este paralelismo de mundos e ambientes encontra sua contra-partida moderna, por exemplo, em Robert Wilson;
Para Wilson, o elemento mais importante do teatro é a luz, criando texturas densas e palpáveis que permitem pessoas e objetos sairem do fundo para ganhar contornos e se tornarem unidades diferenciadas.[11]
Voltando à década de 1920, Bertold Brecht destaca explicitamente a importância da luz. Dentro de sua concepção de estranhamento, proclama que a exibição aberta da iluminação – e não seu efeito ilusório – revela ao espectador o caráter artificial do teatro, destruindo assim algo de sua ilusão de se assistir a uma ação momentânea, espontânea, não ensaiada e real.
Diferente de Brecht, o diretor Max Reinhard usa a luz justamente para criar tais efeitos de ilusão, de espaços de sombras e iluminações
indiretas bem como elemento para reforçar a coreografia de massas no palco
A partir destas formas visuais baseadas no efeitos da luz elétrica, forma-se o chamado filme expressionista que, em grande parte, recorre, de um lado, a figuras e motivos da literatura romântica mas encena visualmente as narrativas do século XIX com tais efeitos de luz emprestados e adaptados ao novo médium fílmico; basta aqui lembrar de filmes como O Estudante de Praga, O Golem ou Nosferatu, onde encontramos, além dos efeitos visuais mencionados, também referências biográficas com o teatro de Max Reinhard, já que muitos dos atores e diretores tiveram passagem por suas produções teatrais antes de atuar no medium fílmico.
O que une de fato muitos destes filmes é então uma iluminação excepcional, encenando e realizando suas narrativas através de uma técnica de luz elaborada, indireta e com efeitos inovadores, com influências claras das encenações teatrais de Max Reinhard. Independente se tais efeitos luminosos se originem a partir da elaboração e aperfeiçoamento consciente dos efeitos da recente iluminação elétrica dos teatros, sobretudo a partir do emprego do cone de luz e do holofote móvel, cortando o espaço e contrastando o protagonista como mancha de luz com a escuridão completa ou criando fortes áreas de sombras [12] ou se, como relata Lotte H. Eisner, [13] sua utilização seria apenas uma saída econômica devido à falta de recursos para cenários complexos, é preciso afirmar que são, sobretudo, tais “imagens de sombra e figuras de luz“, conforme uma publicação recente sobre os filmes e F.W. Murnau e Fritz Lang, [14] que marcam os filmes alemães da época e são a base para sua classificação como expressionistas.. E mesmo o filme O Gabinete do Dr. Caligari,
tradicionalmente considerado o filme expressionista par excellence, apenas utiliza um cenário pintado no estilo expressionista como fundo “moderno” para apresentar uma historia moldada nos padrões românticos.[15]
O único filme, no meu ponto de vista, realmente expressionista, tanto em relação à narrativa bem como referente ao aspecto visual, é Da aurora à meia-noite, que estreou em 1920, mesmo ano em que estreou O Gabinete do Dr. Caligari. Baseou-se em uma peça escrita em 1912 por Georg Kaiser. Publicado apenas em 1916, o texto foi encenado em inúmeros teatros a partir de 1917. Em 1918, o diretor Karl Heinz Martin apresentou sua versão no teatro Thalia em Hamburgo e dois anos depois, o próprio Martin realizou a transposição de Da Aurora à Meia Noite para o medium fílmico. Trata-se do único filme da época que aproxima uma fonte literária expressionista com uma estética visual claramente na mesma linha. Não se situa no mundo das sombras, renuncia ao irracional e obscuro fantasmagórico em favor de um contexto social do inicio do século XX num ambiente urbano: uma historia de dinheiro, sedução erótica, fantasias escapistas, vida boêmia excêntrica, crime e alteração rápida de cenas. Na época, o filme foi anunciado como primeiro filme que se apresenta nas cores fundamentais de preto e branco, não tentando esconder sua configuração visual essencial através, por exemplo, de películas pancromáticas, uma coloração artificial posterior (como no caso de Caligari) ou a pintura de cenários em certas cores para obter efeitos de cinzas na película. Willy Haas comenta em 1922: “Tentou-se forçar as imagens em movimento numa antítese em preto e branco, provavelmente levando em consideração o caráter incolor do cinema, levando isso até as últimas conseqüências. Em termos de teoria artística e literária, totalmente conseqüente”.[16]
Consequentemente não trabalha tanto com efeitos de iluminação no sentido de criar um mundo de sombras e duplicidade, mas apenas com linhas brancas distorcidas e quase fosforescentes sobre um fundo preto e assim se aproxima bem mais das gravuras expressionistas.
Erich Heckel (1883 - 1970) Zwei Männer am Tisch, 1913
O filme se configura através dos cenários reduzidos e parcos, de forte teor gráfico, encurtado, concentrando e comprimindo características essenciais do drama textual em formas visuais. Dominam formas estáticas, linhas simples, um fundo puramente bidimensional, apontando para estruturas de mundo externo e literalmente “traçando” relações lineares de diferentes estados mentais, sociais e discursivas, inclinando-se assim para a abstração gráfica em nome de uma validade mais ampla da condição humana e social.
[1] MCLUHAN, Marshall. Understanding Media. New York: Mentor, 1964, p. 8.
[2] DAEMMRICH, Horst S. e DAEMMRICH, Ingrid G. Themen und Motive in der Literatur. Tübingen: Francke, 1995.
[3]GUERIN, Frances. A Culture of Light: Cinema and Technology in 1920s Germany. Minnesota: Univ Of Minnesota Press, 2005.
[4]BACHELARD, Gaston. La flamme d'une chandelle. Quadrige: Paris, 1961.
[5]BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire. Ein Lyriker im Zeitalter des Hochkapitalismus. Suhrkamp: Frankfurt 1969, p. 37.
[6]SCHWARZ, Michael (Hg.). Licht, Farbe, Raum. Künstlerisch-wissenschaftliches Symposium. Leporello: Braunschweig 1997, p. 121.
[7] SVILAR, Maja. Und es ward Licht: Zur Kulturgeschichte des Lichts. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1983, p. 11.
[8] GEBHARD, Walter (Hrsg.). Licht. Religiöse und literarische Gebrauchsformen. Bayreuther Beiträge zur Literaturwissenschaft 14: Bayreuth 1990, p. 81.
[9] SUGER: De Consecratione 100,19-22. Apud: MEULEN, Jan van der e SPEER, Andreas. Die fränkische Königsabtei Saint-Denis. Ostanlage und Kultgeschichte. Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, 1988. p. 294.
[10] TURRELL, James. Change of State. Frankfurt: Friedman Guiness Gallery. 1991, s.p.
[11] HOLMBERG, Arthur. The Theatre Of Robert Wilson. Cambridge: Cambridge UP., 1996, p. 121.
[12] ver: SCHIVELBUSCH, Wolfgang. Licht, Schein und Wahn : Auftritte der elektrischen Beleuchtung im 20. Jahrhundert. Ernst: Berlin, 1992.[13] EISNER, Lotte H. L'ecran demoniaque : influence de Max Reinhardt et de l'expressionnisme. Paris: Andre Bonne, 1958.
[14] BOZZA, Maik e HERRMANN, Michael (Ed.). Schattenbilder –Lichtgestalten: Das Kino von Fritz Lang und F. W. Murnau. Bielefeld: transcript, 2009.
[15] ver: KORFMANN, Michael. Romântico, expressionista e colorido: O Gabinete do Dr. Caligari (1920). Em: Fragmentos: Revista de Língua e Literatura Estrangeiras, Vol. 30 (2006), UFSC: Florianopolis, p. 97-112.
[16] apud DEGENHARDT, Inge. Über Von morgens bis mitternachts. Disponível em: http://www.edition-filmmuseum.com/product_info.php/info/p110_Von-morgens-bis-mitternachts.html, acesso em 23 de fevereiro de 2010.