IMAGENS DE JOANA D’ARC NA OBRA DE SCHILLER:
DIE JUNGFRAU VON ORLEANS

Alice Schäffer da Rosa 1

 

Resumo: Neste trabalho será analisada a peça de teatro de Johan Cristoph Friedrich Von Schiller, escritor alemão da época do pré-romantismo. A peça chamada “Die Jungfrau von Orléans”  (A Donzela de Orleans) exibe uma história emotiva e cativante, onde a personagem principal, Joana, é uma heroína, característica que por si só desperta interesse e é passível de análise. Este trabalho faz parte do projeto de pesquisa em andamento Imagens de Joana d’Arc: Cinema, História e Literatura coordenado pela professora Cybele Crosseti de Almeida. A presente análise, que encontra-se em fase inicial tem por objetivo identificar a Joana de Schiller e o mito de herói que a compõe dentro da obra, assim como seus contextos influenciadores..

Palavras-chave:Joana d’Arc; Schiller; Herói.

Em 11 de setembro 1801 estreou em Leipzig a peça Die Jungfrau von Orleans (A Donzela de Orleans) escrita para o teatro por Johann Cristoph Friedrich von Schiller, poeta e escritor, que é até hoje ícone da representação heroica da personagem de Joana d’Arc, em contrapartida às versões que o precedem: as visões negativas de Shakespeare e de Voltaire.
Joana d’Arc se tornou personagem tanto da história quanto da ficção, e sua imagem foi descrita das formas mais diversas nas obras literárias servindo aos propósitos daqueles que as escreviam. Propósitos estes que possuíam caráter político, de crítica ou de exaltação, de incentivo moral, ou de entretenimento, estando estes diversas vezes interligados nas obras do teatro, literatura de ficção e no cinema. A mídia e a arte produzidas nos diversos períodos são hoje fontes para que o historiador, que interpreta seu significado na história contextualizando a obra, o autor e identificando a temática e seu propósito naquele contexto. Quando tratamos de produção artística e de mídia, as obras produzidas acerca do personagem de Joana são um terreno amplo para a análise e consequente produção historiográfica.
Colette Beaune (2006) cita as facetas da personagem de Joana: a santa, a feiticeira ou a maga. A arte interpretou estas facetas, tão discutidas desde o tempo da Guerra dos Cem Anos, e preencheu as lacunas que a história não conhece, apelando para cada uma destas facetas conforme o artista, o local e o período em que a obra foi produzida 2.
A peça em questão estreou em Leipzig após ser desacreditada em função de exibir uma interpretação de Joana que era um claro contraponto à apresentada na tão difundida peça de Shakespeare. Schiller criou em sua peça uma história emotiva e cativante, atrativa para o público do teatro, onde a personagem principal, Joana, é uma heroína, característica que por si só desperta o interesse e é passível de análise.
Schiller ainda utilizou-se, como todos os demais autores que escreveram sobre Joana, de licenças poéticas para fechar as lacunas não preenchidas pela história, mas de forma marcante, a ponto de introduzir personagens anacrônicos com a história e de mudar seu final. Schiller dá a Joana o final apoteótico de uma heroína, dentro de um contexto de cavalaria medieval – Joana morre em batalha e não na fogueira, ou seja, ele dá a ela uma boa morte, mais condizente com a heroína que é seu personagem, ao invés da morte pela fogueira, a infame morte de uma herege, que a Igreja teve tanta dificuldade de reinterpretar durante a reabilitação da Joana histórica. Outras modificações significativas que Schiller imprimiu em sua versão de Joana d’Arc incluem um romance com um soldado inglês, que evoca diretamente a questão do porquê Schiller introduziria um inglês como par romântico da heroína da França, embora seja um amor nunca concretizado. Ainda assim todas essas liberdades poéticas tomadas pelo autor apontam para a caracterização épica da história onde uma heroína enfrenta as diversas provações para triunfar gloriosa sobre o inimigo. Anatol Rosenfeld fala sobre o teatro pré-romântico:

 
A insistência na cor local foi, sem dúvida, um dos fatores que contribuíram para abrir o drama a um mundo mais largo e múltiplo e para suscitar a produção de peças de certo cunho épico, que não obedecem à simetria arquitetônica do classicismo, tendendo, ao contrário, à seqüência de cenas soltas, situadas em muitos lugares e tempos. (ROSENFELD, 2000, p. 66).

Identifica-se aí uma característica da obra de Schiller de situar-se num contexto específico e sobre uma personagem individual e histórica e do teor épico 4 de sua narrativa. Assim é possível identificar que esta obra que constitui objeto de análise é influenciada pelo período pré-romântico em que ao autor se insere e pelo estilo épico em que foi escrita, assim como foi embasada em um mito heroico, que conta com características medievais e atemporais. Cabe aqui buscar o embasamento destas características levantadas – a comparação com um modelo de herói busca afirmar que a Joana de Schiller é uma heroína assim como nos indica se a esta é de fato uma heroína medieval ou atemporal. Já a origem do conceito e do tom épico desta caracterização da personagem buscamos na obra do próprio autor e no contexto histórico em que se insere.
Joana d’Arc vem sendo desde seu tempo personagem, tanto central quanto coadjuvante, de obras ficcionais, mas é interessante para o historiador verificar quais os fatores que levaram os autores a desenvolver em suas obras, “Joanas” completamente diversas entre si. Exemplos disso são as interpretações de Chapelain 5, onde Joana é uma heroína aos moldes de uma epopéia da mitologia clássica e a contra-epopeia de Voltaire 6 onde a personagem é desfigurada. (FRAISSE, 1997, p. 533). A este universo de diversidades podemos elencar os exemplos de Shakespeare, versão negativa (e coadjuvante) da donzela, e o de Schiller - a heroína (protagonista). Identificar a Joana de Schiller e o mito de herói que a compõe dentro da obra e seus contextos influenciadores é importante não apenas como fonte histórica para um trabalho mais amplo que visa identificar as representações desta personagem na mídia mas também para compreender o papel de Schiller no cenário cultural da revoluação industrial.
Schiller intitulou sua obra de “tragédia romântica” evidenciando a intenção de criar uma história épica e emotiva, exaltando deliberadamente o heroísmo da personagem e justificando a imprecisão histórica de seu desfecho.
Na peça a Joana d’Arc de Schiller trilha o caminho conhecido dos historiadores, do mito que se tornou realidade, até que se apaixona por um Inglês e encontra um desfecho distante da fogueira, ainda que apoteótico e possivelmente (para o autor) mais digno da trajetória de Joana. A personagem possui diversas características que identificam e legitimam o herói medieval – mas é passível de análise o fato de que, entretanto, muitas destas características provêm de tempos antigos, de modelos mitológicos da Grécia antiga em mimetismo com o ideário cristão da cavalaria medieval e que até hoje estão perpetuados nas representações contemporâneas do personagem. A Joana de Schiller pode assim se encaixar num conceito atemporal de heroísmo.
Através da perspectiva do modelo de heroísmo de Philippe Sellier é possível identificar as diversas fases na vida da personagem de Joana representada na peça que a caracterizam como heroína: A infância e adolescência de Joana são períodos obscuros, “de morte aparente”, até que um sinal põe fim a este período e revela a heroína ao mundo - as visões de Joana e o sinal que deu ao rei.  Em seguida as vitórias militares representam o monstro sobrepujado pela personagem, que provam seu heroísmo e a caracterizam como libertadora de todo um povo. (SELLIER, 1997, p. 468). Segundo Rosenfeld, a liberdade foi uma temática predominante em toda a dramaturgia de Schiller onde

 
o teor político cedeu lugar ao moral e metafísico, à demonstração de que a liberdade da vontade, ao manifestar-se na imanência do mundo empírico dos instintos, das leis da natureza e das intrigas políticas, é testemunha da presença de um mundo espiritual transcendente. (ROSENFELD, 1993, p. 74-75).

Sellier afirma então que a projeção pública do herói tende à confrontá-lo com o poder político instituído caso ele não seja seu depositário, o que ocorre com Joana quando esta deixa de servir aos interesses do rei. Conforme Sellier (1997, p.469):

 
Esse conflito entre o herói e o chefe político reproduz, na ordem da guerra, aquele que opõe, na ordem religiosa, o profeta ao sacerdote, o inspirado de Deus ao funcionário, a alma incandescente ao mesquinho.

Joana d’Arc, na peça, estava implicada tanto no conflito de ordem guerreira quanto religiosa. Em seguida, ainda seguindo o modelo, o herói é levado por sua grandeza ao descomedimento - onde Joana encontra a derrota em Paris - passível de punição: o ferimento e posteriormente sua captura. Já a morte do herói deve ser apoteótica, já que é inevitável: Schiller desenvolveu um desfecho para Joana onde esta escapa da morte infame pela fogueira para morrer na glória da batalha, evocando os conceitos de honra e valores procedentes de um ideário de cavalaria medieval. Percebe-se, portanto, que a intenção do autor não foi de criar um modelo feminino de herói da cavalaria medieval, mas que sua protagonista se encaixa num modelo de herói atemporal.
Em Joana d’Arc, portanto, não se identifica uma das principais características do herói medieval: o cavaleiro é o ideal masculino, em cujo mito a mulher representa a tentação, ou a dama que deliberadamente afasta de si seu cavaleiro enviando-o para realizar feitos gloriosos. Joana, entretanto, possui qualidades heroicas femininas e masculinas: ela obteve sucesso no campo da guerra, e possui os valores do cavaleiro medieval como coragem, força, honra; e das heroínas de tempos passados: ela é também a virgem, pura, cuja imagem evoca o respeito em lugar da luxúria dos soldados. (SELLIER, 1997, p. 472).
Assim em Die Jungfrau von Orleans, Schiller criou uma personagem cativante, exaltando o heroísmo de Joana sem privá-la de sua feminilidade, contanto com características atemporais, que estão, entretanto, situadas no contexto medieval onde se passa a história e influenciadas pela perspectiva romântica de seu autor. 
A mudança das circunstâncias da morte da protagonista, juntamente com o amor de Joana por Lionel, um soldado inglês e, portanto, do exército inimigo, são as criações mais significativas de Schiller em sua representação de Joana, pois demonstram uma visão peculiar e única da trajetória da personagem. Essas licenças poéticas dão tanto o tom heroico e épico como também demonstram o aspecto mítico que a personagem histórica adquire na obra de Schiller, o que levanta a questão da intenção do autor ao escolher sua forma de representar ao público sua versão de Joana e do conflito em si. Na peça não são demonizadas nem a França nem a Inglaterra, o que deixa claro que a intenção do autor não estava focada no aspecto político do conflito (Guerra dos Cem Anos) ou da própria personagem. As ideias do autor sobre a função da arte expressas em seu livro Sobre poesia ingênua e sentimental (SCHILLER, 2003) lançam uma luz sobre como Schiller percebia o impacto da arte no público e sua função na sociedade, o que podemos relacionar com as características peculiares expressas em Die Jungfrau von Orleans. Na referida obra o autor realiza “uma reflexão sobre a recepção aos produtos do fazer poético” 7.
Para Schilller, a arte no período da revolução industrial (época em que a peça em questão foi escrita) não poderia se equiparar tanto à função quanto à forma como era construída a arte na Antiguidade pelo contexto histórico e social em que se inseria. Conforme esta linha de pensamento a poesia antiga era ingênua, feita pelo processo de mímese, ou seja, o artista apenas representava a sua relidade como a percebia, na arte. Este processo era possível, pois, na Grécia antiga os homens eram uma unidade, completos, comforme afirma Schiller (2003, p.42):

 
Amamos neles (objetos da natureza) a vida silenciosa e criadora, a ação tranquila a partir deles mesmos, a existência de acordo com leis próprias, a necessidade interior, a eterna unidade consigo próprios. Eles são o que nós éramos; são o que devemos tornar a ser. Fomos como eles natureza e a nossa cultura deve reconduzir-nos à natureza pela via da razão e da liberdade.

No excerto acima Schiller inicia seu principal argumento, o de que a cultura (e consequentemente a arte) tem a função de conduzir os homens (como sociedade e indivíduos) novamente a um estado único, de homem completo, estado este no qual os processos de divisão do trabalho drásticamente acentuados na revolução industrial os haviam privado. Conforme Schiller (2003, p.42):

 
Idêntico a si próprio e feliz no sentimento da sua humanidade, ele (grego antigo) tinha de permanecer nela como sendo o seu máximo, fazendo esforços para aproximar-se de tudo o que estivesse contido nela; enquanto nós, não idênticos a nós proprios e infelizes com nossas experiências de humanidade, não temos um interesse mais urgente do que fugir à mesma, desviar do nosso olhar uma forma tão mal sucedida.

Assim Schiller expressa não apenas sua percepção sobre o mundo e o homem moderno, imcompleto e insatisfeito, como também nos fornece a base para compreender sua afirmação de que a arte tem uma função de educar. Michael Korfmann (2005, p. 19) afirma quanto a isso: “Seu projeto de educação estética através da autonomia da arte é resultado de seu fracasso no plano político, especificamente seu desapontamento com os rumos da Revolução Francesa”. A autonomia da arte refere-se ao fato de que, para que a arte cumpra sua função de enobrecimento do caráter, esta deve ser autônoma para prover-se das licenças poéticas que permitem à arte representar o ideal, o ético e o moral, de forma a elevar indivíduo e sociedade. Embora esta mesma arte utilize-se de elementos da realizadade à qual se insere como fonte e de forma a relacionar-se com seu público, ela deve também estar livre das amarras desta realidade no processo de criação do artista. Esta característica relaciona-se diretamente com a heroína que Schiller criou em Die Jungfrau von Orleans: liberta-se das amarras do tempo e da parte “feia” ou insatisfatória (para o autor) na trajetória histórica de Joana, utilizando-se de licenças poéticas em que estão presentes o anacronismo e a incorreção histórica do desfecho da personagem para que a peça obtivesse, dentro do conjunto de ideias do autor, o valor artístico. Assim uma Joana d’Arc heroína, não da França e sim da humanidade 8, uma personagem idealizada para compor uma peça que eleva o caráter dos homens que vivem insatisfeitos com seu tempo, proporciona uma aproximação com sua totalidade e a busca do retorno a um estado completo.
A peça aqui analizada mostra-se portanto o fruto da análise filosófica do autor do período em que foi escrita, durante a revoluação industrial e do novo complexo de relações sociais que este contexto histórico lhe imprimiu. Cabe ainda num prosseguimento de pesquisa identificar o impacto que de fato Schiller obteve com a sua criação de forma a viabilizar a análise da contribuição deste autor para a formação da imagem de Joana no s XIX.  Torna-se entrentanto mais claro, sob a luz das ideias do autor sobre o papel da arte, poesia ingênua e sentimental e educação estética, que a imagem de Joana que Schiller criou teve sim a intenção de ser uma heroína de caráter e moral, de expressar a visão idealizada de a Idade Média de forma a influenciar positivamente os tempos modernos.

 

The image of Joan of Arc in Schiller´s play: Die Jungfrau von Oléans.

Abstract:This paper analyzes the play of Johan Christoph Friedrich von Schiller, German writer of the time of pre-romanticism. The play called "Die Jungfrau von Orleans" (the maid of Orleans) displays an emotional and captivating story, where the main character, Joan, is a hero, feature that alone arouses interest and is subject to analysis. This work is part of the ongoing research project "Images of Joan of Arc: Cinema, History and Literature" coordinated by Ph.D. Cybele Crosseti de Almeida. This analysis, which is in the initial phase aims to identify the Joan of Schiller and the myth of the hero that composes her in the play, as well as their influencing contexts.

Keywords: Joan of Arc. Schiller. Hero.

 

1 Graduanda em História na UFRGS. Email: alicesrosa@gmail.com. Monitora da disciplina de Paleografia medieval na UFRGS desde abril de 2009, ministrada pela Prof. Drª Cybele Crosetti de Alemida.

2 Simone Fraisse (1997, p.533) afirma: “por um paradoxo que talvez não seja de surpreender, quanto mais a história de Joana adquire contornos precisos, menos à vontade os poetas se sentem em relação à ela.”

3 Conforme Philippe Sellier (1997, p.469): “em mitologia, essa última vitória (a morte) tem um nome: a ‘apoteose’ heróica”.

4 Para Simone Fraisse (1997, p.532): “ são lembradas as suas façanhas (de Joana) há o deslumbramento pelo fato de uma mulher poder realizá-las; celebra-se a a combatente ou melhor ainda, a amazona. É portanto o caráter épico de sua cavalgada que importa.”

5 La Pucelle ou La France délivrée. (FRAISSE, 1997, p. 533)

6 Pucelle D’Orléans. (FRAISSE, 1997, p. 533)

7 Teresa Rodrigues Cadete, tradutora de Sobre poesia ingênua e sentimental (SCHILLER, 2003, p.22), e autora da introdução, comentário e glossário da referida obra.

8 Daí o amor platônico com o soldado inglês, não mais visto como o inimigo. Esta noção de universalismo (diferente da tônica nacionalista, predominante nas representações de Joana) é compatível com o texto de Schiller para a Ode à alegria, movimento final da 9ª sinfonia de Beethoven, também este decepcionado com Napoleão e com os rumos da Revolução Francesa.

 

Referências:

BEAUNE, C. Joana d’Arc.São Paulo: Globo, 2006.

FRAISSE, S. Joana d’Arc. In: Dicionário de Mitos Literários. Brasília: Ed da UNB, 1997, pp. 532-533.

KORFMANN, Michael. Friedrich Schiller. Revolução Francesa, Autonomia e Educação Estética. Cadernos do IL, Porto Alegre n. 30, p. 13-27, jun. 2005.

ROSENFELD, A. O teatro épico. São Paulo: UNICAMP, 2000.

______. História da Literatura e do Teatro Alemães. São Paulo: UNICAMP, 1993.

SCHILLER, Friedrich. Sobre poesia ingênua e sentimental. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.

SELLIER, P. Heroísmo (o modelo - da imaginação). In: Dicionário de Mitos Literários. Brasília: Ed da UNB, 1997. p. 468-472.