CHANSON DE TOILE:
A INFLUÊNCIA DO RITMO NAS CANTIGAS DE TRABALHO MEDIEVAIS

Priscila Oliveira Monteiro Moreira 1

 

Resumo: Esta análise pretende relacionar o ritmo dos versos de Estevam Coelho e Dom Dinis com o movimento executado em suas cantigas de trabalho. Como os séculos XIII e XIV oferecem poucas fontes de registro, o corpus desta análise está reduzido a três poemas que foram selecionados por sua temática: cenas de trabalhos domésticos atribuídos a mulheres. As chamadas Chanson de Toile (ou cantigas de tecer), definição incluída no gênero Cantiga de Amigo, serão abordadas bem como o trabalho feminino no contexto medieval.

Palavras-chave:ritmo; poesia; Chanson de Toile; cantiga de trabalho; trabalho feminino.

Afirma Aristóteles que “A poesia originou-se a partir do natural instinto de imitação do homem, que imita ações elevadas ou vulgares, e de sua predisposição para a melodia e o ritmo” (ARISTÓTELES). Sendo a palavra “poesia” originária do grego poéisis, verbo “fazer” (PEREIRA, 1988), tem-se, desde a Lírica, a ideia de trabalho poético associado ao belo. As cantigas analisadas neste corpus sofreram um tratamento estético de seus poetas, observadores do cenário medieval, também, possivelmente, admiradores dos serviços executados por mulheres, inspiradoras dos versos.
Tanto quanto significado, poesia é ritmo. Com efeito, não há o que gere esse ritmo: ele é inerente às ações humanas, evoca questões da vida cotidiana, influenciando na produção de certos movimentos de trabalho (PEREIRA, 1988, p.7), tais como “o ritmo monótono da espadela, do embalar do berço ou do mover da mó do moinho” (BELL, BOWRA, et al, 1946. p.42). Assim, ao que parece, algumas atividades, especialmente as manuais, seguem certa pulsação, relação entre movimentos fortes e fracos no espaço de uma frase ou verso, quando representadas poeticamente.
Nos séculos XIII e XIV, onde figuravam incipientes indústrias de lã (HEERS, 1965, p.92) e surgiam máquinas como rodas de fiar e teares horizontais (HEERS, 1965, p.81), o trabalho manual passou a ser mais valorizado no contexto europeu. Em um mundo medieval, onde a presença da mulher era menosprezada pelo seu gênero e associada ao maligno, é inegável sua importância na realização de trabalhos tidos como “masculinos”:

 
A impressão de conjunto que podemos obter é que na cidade, igual aos campos que a cercam, o trabalho das mulheres cumpre uma função que não podemos qualificar de simplesmente acessória ou complementária. [...] Tampouco parece que se podia entender como simplesmente acessória a participação das mulheres na função comercial. Todos os autores concordam em apontar que as referências a atividades comerciais desenvolvidas pela mulher são abundantes, ainda que sua maioria se circunscrevam ao comércio local e se refiram principalmente a comercialização realizada em tendas ou pontos fixos de venda (MENDEZ, 2003, p.124).

A confecção de tecidos era um ramo que se expandia. A partir da contribuição das mulheres em tal ofício, cargos como tecelãs, fiandeiras, trançadoras e tosquiadoras (MENDEZ, 2003, p.9) começaram a ser encabeçados por elas. Registra Heers que, além de miseráveis salários, os obreiros da lã e da seda eram geralmente “pobres, muito mal vestidos, de mãos estragadas, e, no caso dos tintureiros, com unhas sempre vermelhas ou azuis” (HEERS,1965, p.98).
Grupos de trabalho começavam a lidar com produções maiores, cada vez mais requisitados com o crescimento do mercado, atuando desde a matéria-prima até o acabamento. No entanto, trabalhos mais delicados mereciam maior atenção e exclusividade. Lembra Mattoso que a divisão de trabalho (que nessa fase préindustrial ainda não era o mal da sociedade!) “confere uma dignidade maior aos ofícios manuais e dá mais importância a uma certa especialização técnica que inclui, por exemplo, o fabrico de tecidos preciosos [...]”(MATTOSO, ANO, p.27). Reckert e Macedo afirmam, em relação a tais materiais: “Não só era a seda o material nobre por excelência, como a própria ocupação de fiar era notoriamente um monopólio das donzelas e das damas nobres” (RECKERT e MACEDO, 1976, p.226).
Os serviços diferenciados no tecer, valorizados especialmente pela nobreza, exigiam das fiandeiras um espaço de trabalho reservado, uma vez que lidavam com fios de ouro e outros materiais caros. Executada em um ambiente mais doméstico, mais refinado e, por sua vez, mais confiável, a função de costureira passou a ser realizada por donzelas de camada mais elevada, “enobrecendo”, assim, o ofício. Esclarece J. J. Nunes:

 
Ao costume das damas francesas de Idade Média cantarem, enquanto trabalhavam, as chamadas Chansons de histoire, assim denominadas pelo seu caráter narrativo, ou de toile, pelo seu uso especial [...].O bordar constituía, na Idade Média, como se vê, uma das mais apreciadas prendas do sexo feminino (NUNES, 1973, p. 5) 2.

Será justamente nesses espaços físicos fechados que as cantigas de tecer se apresentarão. Sob esta perspectiva íntima, também, elas precisam ser consideradas: são breves narrativas, geralmente uma conversa entre duas mulheres, sobre algum assunto familiar. Define Léglu (2007) que as cantigas de tecer são “pequenos poemas narrativos com refrãos que recontam tormentos e triunfos de moças casadas e solteiras. São narrativas em terceira pessoa com frequência de refrão em primeira pessoa” (p.27).
Com base nessas informações, é possível enxergar as cantigas de tecer como fruto do trabalho estético de poetas observadores que admiram o canto feminino. São as cantigas, pois, representações de cenas de trabalho vistas através de um olhar gentil tomado de estima.
A Chanson de la belle Yolande, de Estevam Coelho, ilustra a atmosfera doméstica em que as fiandeiras trabalhavam, quase sempre sozinhas. Nesse poema estão mãe e filha no quarto, enquanto esta maneja fios de ouro e seda. Executando a ação, ela ouve as ameaças da severa mãe que diz que irá castigá-la por ter conversado com um cavaleiro.

 

Bela Yolanda no quarto silencioso

“Mãe, por que me castigará?

Sobre seus joelhos desdobra tecidos

É por costurar ou cortar

Cose um fio d’ouro, outro de seda

Ou fiar ou pincelar?

Sua severa mãe a censura

Ou é demasiado dormir?

            − Castigarei você,

             − Castigarei você,

                            Bela Yolanda.

                            Bela Yolanda.”

Bela Yolanda, eu castigarei você:

“Nem de costura, nem de corte

És minha filha, eu preciso fazer.

Nem fiar, nem de pincelar,

Minha dama mãe, sobre o que?

Nem é demasiado dormir...

“Eu lhe direi, por minha fé:

Mas demasiado falar ao cavaleiro!”

            − Castigarei você,

            − Castigarei você,

                            Bela Yolanda.”

                            Bela Yolanda.

.

Sendo o poeta um observador, é possível considerar que sua lente inclua o movimento da donzela enquanto costura, dando relevância, assim, a métrica da cantiga. No momento em que insere um dêitico, Coelho apresenta uma pausa no refrão. Octavio Paz aponta que o ritmo e a pausa, mesmo que não digam, dizem algo:

 
O ritmo gera em nós uma disposição de ânimo que só poderá acalmar-se quando sobrevier “algo”. Coloca-nos em atitude de espera. Sentimos que o ritmo vai em direção a algo, ainda que não saibamos o que possa ser esse algo. Todo ritmo é sentido de algo. Assim, pois, o ritmo não é exclusivamente uma medida vazia de conteúdo sem uma direção, um sentido. (PAZ, 1986, p.57).

Talvez através dos dêiticos seja possível identificar a angústia da filha, nessa “atitude de espera” pela explicação do castigo. No original em francês, há rima no final dos primeiros versos de cada estrofe, o que permite que o poema tenha ritmo, assim como, provavelmente, se possa ver a imagem da filha com a costura manual sobre os joelhos.
Do mesmo autor, a cantiga a seguir parece ter mais relação entre verso e movimento:

 

Sedia la fremosa seu sirgo torcendo,

sa voz manselinha fremoso dizendo

cantigas d’amigo

Sedia la fremosa seu sirgo lavrando,

sa voz manselinha fremoso cantando

cantigas d’amigo.

− Par Deus de Cruz, dona, sei eu que havedes

amor mui coitado, que tam bem dizedes

cantigas d’amigo;

par Deus de Cruz, dona, sei eu que andades

d’amor mui coitada, que tam bem cantades

cantigas d’amigo.

− Avúitor comestres, que adevinhades!

A ambientação permanece, bem como a conversa, com outra “dona”. Somente duas ações são mencionadas: costurar e cantar cantigas de amigo 3. Cantar como “sedativo do esforço muscular” (SPINA, 1982, p.20). Por fim, o registro de uma brincadeira: “abutre comeste que adivinhaste!”.
A repetição, diz Combarieu, é a base do ritmo (1994, p.135). O ritmo da “fremosinha” acompanha o ir e vir de um tear ou de roda de fiar. Sobre ambas as máquinas, é possível especular o ritmo da cantiga. “É preciso reconstruir na imaginação o ritmo imemorial da fiandeira” (RECKERT, 1976, p.228): disposta em quatro estrofes de três versos, consideremos, em princípio, o movimento de uma roca. O ritmo dos versos é calmo, semelhança que há no trabalho ser mais lento.
Reckert afirma que fiandeira estava diante de um fuso:

 
Cada estrofe do poema arremeda a rotação do fuso: a anacruse inicial assinala o arranque duma série de rotações, e o troqueu final, a pausa momentânea que se faz para estender o fio acabado de torcer. O verso acrescentado, cujo isolamento anômalo o torna mais concludente, corresponde à pausa maior com que termina um “ciclo” de fiação, guardando-se na haste do fuso acumulado, antes de começar um novo ciclo (RECKERT, 1976, p.228).

Nesse raciocínio, usando as mãos e os pés, o ritmo do movimento seria com as três partes do corpo (dois movimentos de mãos e um movimento com os pés), sendo “um, dois, três”, “um, dois, três”, assim como na metrificação da cantiga. A fiandeira faria girar o fuso com a ajuda de um pedal que aciona uma roda e conservaria as suas mãos livres para torcer os fios (RECKERT, 1976, p.78).
No entanto, pensar no movimento da “fremosinha” em um tear horizontal, o mais usado na época por ser mais produtivo, parece fazer ainda mais sentido, uma vez que o princípio de seu funcionamento é composto por três fases como base e mais uma para finalização. Sentada no banco a fiandeira manobra o pedal, que levanta o liço, que, na lançadeira emite a trama (RECKERT, 1976, p.81). Para tal, passa-se o fio sob a trama, ajeita-se o, puxa-se o braço de madeira que o comprime na fazenda, e, com os pés, pedala-se uma única vez para o próximo fio avançar. O pedalar é o último passo, feito somente após todas as três demais ações. Em um ritmo rápido de produção (ainda que em um espaço não-industrial), o compasso desse movimento seria, visivelmente, “um, dois, três”, “um, dois, três”, “um, dois, três, quatro”, aproximando-se ainda mais do ritmo da cantiga de Coelho.
Em uma cena muito plástica de trabalho doméstico, Dom Dinis escreveu sobre a figura feminina realizando um trabalho, mas desta vez em um ambiente aberto, lavando roupas.

 

Levantou-s’ a velida,

E vai lavar delgadas

levantou-s’ âlva,

(levantou-s’ âlva);

e vai lavar camisas

o vento lhas levava

em o alto:

em o alto:

vai-las lavar âlva.

vai-las lavar âlva.

Levantou-s’ a louçãa,

O vento lhas desvia

levantou-s’ âlva,

(levantou-s’ âlva):

e vai lavar delgadas

meteu-s’ âlva em ira

em o alto:

em o alto.

vai-las lavar âlva.

Vai-las lavar âlva.

Vai lavar camisas

O vento lhas levava

(levantou-s’ âlva);

(levantou-s’ âlva):

o vento lhas desvia

meteu-s’ em sanha.

em o alto:

Vai-las lavar âlva.

vai-las lavar âlva.

 

Na minuciosa análise feita por Reckert (1976, p. 24, 27 e 56) sobre este poema, há na consideração da alvura da “velida” a sugestão de sua pureza, o quão cedo ela saiu para realizar a ação e também a aliteração do “v” em sua relação com o vento que leva as camisas e a deixa em “sanha”. Para o crítico, a repetição é usada como “artifício intensificador” (RECKERT, 1976, p. 23), que se relaciona com o grau de ira em que a moça entra.
No entanto, há ainda um ponto que parece ser digno de destaque: a repetição dos versos e do movimento que a “louçãa” precisa fazer para realizar seu trabalho. Por quatro vezes o vento leva as camisas. Quatro são os movimentos que são necessários para que se perceba a roupa voar: olhar, aproximar-se, juntá-la e guardá-la novamente. Quatro são os versos de cada estrofe. Forçando um pouco mais, também o ato de lavar abrange quatro tempos: por a roupa em água, esfregar, enxaguar e torcer.
Lembra Croce:

 
O fundamental na poesia, o que a distingue da arrítmica expressão imediata e, através da poesia, se transmite à literatura, é o ritmo, a alma da expressão poética e, portanto, a própria expressão poética, intuição ou ritmação do universo, assim como o pensamento é a sistematização (CROCE, 1967, p.219).

Por fim, apontam as observações feitas a uma possível relação entre as cantigas de tecer e sua métrica com o movimento exercido pelo trabalho apresentado nos poemas, uma vez que as cantigas são representações estéticas. Talvez haja mais complexidade na métrica dessas cantigas, geralmente vistas por um viés antropológicoe tidas até o momento como “menores” por pertencerem a uma subdivisão das Cantigas de Amigo. Uma vez que a temática abordada mostra um ofício manual em um contexto de produção específico, o item rítmico merece ser valorizado. Também a presença de poetas inspirados pelas figuras femininas para sua criação, característica já presente nas Cantigas de Amigo (onde as mulheres têm voz, apesar de não escreverem), parece ser de fundamental relevância para o entendimento e contextualização dos poemas.

 

Chanson de Toile: the influence of the rhythm in the medieval songs of work.

Abstract:This analysis seeks to relate the rhythm of the verses of Estevam Coelho and Dom Dinis with movement performed in their songs of work. As the centuries XIII and XIV offer few sources of registration, the corpus of this analysis is limited to three poems that were selected by its theme: domestic scenes of work assigned to women. Designated Chanson de Toile (or songs to make), the definition included in the genus Cantiga de Amigo will be addressed and the women in the medieval context.

Keywords:rhythm; poetry; Chanson de toile; work song; women’s work.

 

1 Graduanda em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pesquisadora de Literatura.

2 “[...] há trabalhos manuais, como os da tecelagem e os da cerâmica, que não necessitam absolutamente de ritmo e no entanto o trabalho fá-los acompanhar de cantos durante a execução.” SPINA, 1976, p.9.
3 Dedico esta breve análise a meus avôs que muito seguiram o ritmo das grandes máquinas para aliviar os dias difíceis. Para a realização deste estudo, contei com a contribuição de Ms. Catherine Léglu a quem agradeço imensamente pela envio além-mar de seu artigo, gentilmente cedido para compor meu arcabouço teórico.
4 Todas as citações que exigiram tradução foram feitas livremente pela própria autora deste trabalho.

 

Referências:

ARISTÓTELES. Poética. 1448b

BELL, Aubrey; BOWRA, C.; ENTWISTLE, William J. Da poesia medieval portuguesa. Revista Ocidente, Portugal, 2ª ed, 1946.

COMBARIEU, Jules. La musica, sus leyes y su evolucion.. Buenos Aires: Editorial Cronos, 1944.

HEERS, Jacques. O trabalho na Idade Média. Paris: Publicações Europa-América, 1965.

LÉGLU, Catherine. Place and Movement in the Old French Chanson de Toile. Bristol: University of Bristol. Revista Parergon, Volume 24, Number 1, 2007, pp. 21-39

MATTOSO, José. O essencial sobre a cultura medieval portuguesa (séculos XI a XIV). Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1993.

MÉNDEZ, Maria Carmen Pallares. A vida das mulheres na Galicia Medieval 1100-1500. Lisboa: Universidade de Santiago de Compostela, 1ª ed, 2003.

NUNES, José Joaquim. Cantigas de Amigo dos trovadores galego-portugueses. Lisboa: Centro do Livro Brasileiro, 1973.

PAZ, Octavio. El arco y la lira: el poema, la revelácion poética, poesia e historia. Mexico: Fondo de Cultura Economica, 1986.

PEREIRA S.J., Isidro. Dicionário Grego-Português e Português-Grego. Braga: Livraria do Apostolado da Imprensa, 1998.

RECKERT, Stephen e MACHADO, Helder. Do Cancioneiro de Amigo. Lisboa: Assírio e Alvim, 1976.

SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. São Paulo: Ática, 1982.