EXPOSIÇÃO DE UM ARGUMENTO - UMA HOMENAGEM AOS 900 ANOS DA MORTE DE SANTO ANSELMO

Sergio Ricardo Strefling 1

 

Resumo: Na Idade Média não só foram construídas catedrais, mas também foi desenvolvido um sistema escolar extraordinário, criadas as universidades e escritas grandes obras de filosofia, teologia e literatura. O argumento ontológico de Santo Anselmo (1033-1109) confirma a importância e profundidade do pensamento medieval. Este argumento simples é o único que aparece no capítulo 2 do Proslogion. Kant o denominou “argumento ontológico” e nós, curiosamente, ainda assim o chamamos. Os medievais, simplesmente, o chamavam de “o argumento de Anselmo” (argumentum Anselmi).

Palavras-chave:Deus; Anselmo; Argumento ; Ontológico; Dialética.

Introdução:

Anselmo nasceu em Aosta (1033), foi monge beneditino no mosteiro de Bec e faleceu como arcebispo de Cantuária (1109). Foi um grande filósofo da Idade Média, embora se procure, em vão, o termo “filosofia” em seus escritos. No entanto, o que há de argumentação, do ponto de vista racional, ora, isso não falta; em especial no contexto das provas da existência de Deus apresentadas por Anselmo. Em homenagem a ele, considerado por muitos o “pai da escolástica”, trazemos a lume um breve estudo do argumento bastante discutido na teodiceia medieval.
A famosa prova anselmiana encontra-se na obra Proslogion. Esta obra consta de vinte e seis capítulos onde, no primeiro, Santo Anselmo inicia com uma prece e, do segundo ao quarto capítulos, expõe o argumento. Já no Proêmio, Anselmo explica-nos que não estava satisfeito com as provas expostas no Monologium, e, portanto, buscava um argumento único que provasse a existência de Deus sem ter que recorrer a nenhum outro. Parece que Anselmo, depois de expor as três provas que partiam das criaturas para chegar ao criador, teve medo de determinar o ser de Deus com relação às coisas. Parece ser próprio de Anselmo que para falar dignamente de Deus tem que tomá-lo em absoluto. Daí, então, a busca de um argumento que para ser provado não necessitasse de nenhum outro fora de si mesmo. “Comecei a pensar comigo mesmo se não seria possível encontrar um único argumento que válido em si e por si, sem nenhum outro, permitisse demonstrar que Deus existe verdadeiramente” (ANSELMO, 1973a, p.105).
Preocupado desde há muito tempo com este pensamento, estava a ponto de renunciá-lo quando, de repente, encontrando-se muito cansado, veio-lhe à mente aquilo que já pensava não mais encontrar. Surge, então, o argumento único que será a matéria da obra que Santo Anselmo denomina fides quaerens intellectum (a fé buscando o entendimento).

 
Anselmo é importante na História da Filosofia não apenas pelo argumento do Proslogion (a que muitos estudos parecem reduzi-lo), mas por contribuir, muito antes de que a filosofia medieval conhecesse a totalidade dos  escritos aristotélicos, para a instauração de um novo método de filosofar, método este que faz interagir meditação e disputa, lógica e autoridade, filosofia e Sagradas Escrituras. Confiando na capacidade racional do homem, a reflexão anselmiana tem o mérito de mostrar que o rigor filosófico não é algo de segunda ordem, razão pela qual é não apenas lícito, mas necessário lançar-se ao esforço de empreendê-lo” (VASCONCELLOS, 2005, p. 18).

O ponto de partida

O ponto de partida está na fé - e esta fé no Deus presente, constitui a situação humana de que parte a prova. O capítulo I constitui-se em uma prece. Não se trata de uma exortação ao conhecimento de Deus, senão de sua contemplação. Deus não é uma hipótese a demonstrar, senão que já está de alguma maneira presente e pode, portanto, ser contemplado. “Abre a ele todo o teu coração e dize-lhe: quero teu rosto, ó Senhor” (ANSELMO, 1973a, p.105).
Buscar o rosto de Deus no contexto bíblico, e não é outro o de Anselmo, significa conhecer a Deus e viver em sua presença. Todo o capítulo é uma chamada a Deus. Ao Deus que está presente em sua ausência. Ao Deus que não se tem, mas que está. Ao Deus que não se vê, mas que, para vê-lo, foi feito o homem. “Ó Senhor, tu és o meu Deus e o meu Senhor; e nunca te vi. Tu me fizeste e resgataste e tudo o que tenho de bom devo-o a ti. No entanto, não te conheço ainda. Fui criado para ver-te e até agora não consegui aquilo para que fui criado” (ANSELMO, 1973a, p.106).
A imagem de Deus está no homem, velada pelo pecado. Então é necessário recuperar, de alguma maneira, a situação em que o homem se encontrava antes do pecado original. O homem precisa sair de si mesmo e pôr-se a caminho de Deus. Por isso, Anselmo insiste que é preciso buscar o rosto de Deus. Na sua filosofia em nenhum momento esquece os dados oferecidos pela teologia dos Santos Padres. Mas, segundo filósofo, o homem não pode buscar a Deus, se Ele não se mostrar. Aos poucos, Anselmo vai introduzindo-nos na prova a priori, a qual tem seu ponto de partida na ideia de Deus segundo o dado da fé. “Ensina-me como procurar-te e mostra-te a mim que te procuro: pois, sequer posso procurar-te se não me ensinares a maneira, nem encontrar-te se não te mostrares” (ANSELMO, 1973a, p.107).
A fé é o ponto de partida que move a ação intelectual de Anselmo. Mas esta ação não é mera passividade. A fé exige esforço do homem. É o homem que crê e compreende. Anselmo parte da revelação, porque entende que o homem não poderia buscar aquilo que não lhe foi dado. A fé é um dom que inquieta o homem para que nela ele busque e compreenda. Anselmo distingue entre fé viva e fé morta (ANSELMO, 1973c, p.97). Esta distinção tem relação com a fides quaerens intellectum. Fé viva é crer em. Fé morta é crer, apenas. Na fé viva há um dinamismo essencial, em oposição à estaticidade da fé morta, que se limita a crer no objeto, sem tender para dentro do objeto, porque lhe falta o amor que é fonte de vida e impulso de operosidade. A fé morta não é a perda da fé e, sim, a falta da fé, enquanto carente de amor. É, por exemplo, o caso do cego, que poderia e deveria ver, mas não enxerga aquilo que sempre poderia e deveria enxergar. É o cego que tem olhos, mas carece de visão: poderá ver o objeto, mas não penetrar com a visão no objeto. Para Anselmo, não existe a fé sem amor. A fé operante só pode ser acompanhada por amor. Portanto, aquele que crê impulsionado pelo amor busca compreender. A fé não é passiva, mas é esforço do homem que busca compreender e abraçar o que lhe foi dado em potencial. É esta fé operante, que exige compreensão, que consiste no ponto de partida da dialética do argumento do Proslogion (ANSELMO, 1973a, p.108).
Anselmo parte da fé que afirma que o homem é imagem de Deus. O homem para conhecer a si mesmo, tem que conhecer aquele do qual é imagem. O pensar a si mesmo leva a pensar sobre Deus. Neste sentido, tece belo comentário Inácio Escribano, ao tratar do Proslogion no horizonte da teologia da imagem de Deus:

 
Ao começo do Proslogion nos é notável esta frase: ‘Ó Senhor, reconheço, e rendo-te graças por ter criado em mim esta tua imagem a fim de que, ao recordar-me de ti, eu pense em ti e te ame’. A frase ocupa um valor muito relevante na disposição do primeiro capítulo o qual se inicia com um suspiro da alma que busca angustiadamente um rastro da presença divina. A partir do ‘reconheço’ podemos dizer, já há um certo vazio. E neste vazio angustiante segue-se a tese – existe em nós a imagem de Deus -, em que se assenta o fundamento da esperança: a busca não pode ficar frustrada. A ideia de Deus nos foi conferida como presente no momento da criação, ‘a imagem e semelhança’(...) (ESCRIBANO, 1965, p. 55).

A noção de Deus

Na afirmação “tu és um ser do qual não é possível pensar nada maior”(te esse aliquid quo nihil maius cogitari potest) (ANSELMO, 1973a, p.108), Anselmo expressa a noção de Deus. É interessante observar que não encontramos a expressão de nenhum nome divino, seja bíblico ou clássico. E isto tem sua importância desde o momento em que tal fórmula se apoia no recurso dialético que a pregação do insipiente provoca. A fórmula que desencadeia o argumento único é criação de Anselmo. Convém aqui lembrar o que ele diz no Proêmio do Proslogion:

 
No entanto, um dia, quando já estava cansado de resistir a essa perseguição inoportuna, justamente no calor do conflito dos meus pensamentos, eis que se me apresenta a ideia de que já desesperara de encontrar. Acolhi-a com tanto entusiasmo quanto empenho colocara em rechaçá-la (ANSELMO, 1973a, p.105).

Essa noção de Deus e formas prévias do argumento já se encontram em Cícero (ULLMAN, 1989, p. 76), Sêneca (ZAMBRANO, 1987, p. 119) e Agostinho (AGOSTINHO, 1968, p. 235); a maneira pela qual Anselmo faz esse argumento se desenvolver por si mesmo até dar a conhecer o que ele encerrava em si desde o início, aí é que se revela um filosofar dialético totalmente novo. A noção de Deus, na compreensão de Santo Anselmo, se torna mais clara quando ele explica ao seu crítico Gaunilo a diferença que há entre um “ser que seja maior que todos” e um “que não se pode pensar nada maior”. (ANSELMO, 1973b, p.141)

A demonstração do argumento

Anselmo parte de uma reflexão religiosa sobre o Salmo 13: “Diz o insensato em seu coração: Deus não existe”. Portanto, o insensato deve convencer-se de que existe, ao menos, no entendimento, “algo que não se pode pensar nada maior”, o entende, e o que o entende está ou existe no entendimento (ANSELMO, 1973a, p.108).
O “ser que não se pode pensar nada maior” existe na realidade. Esta é uma afirmação. Mas, se “o ser que não se pode pensar nada maior” existe apenas no entendimento e não na realidade, se pode pensar que exista também na realidade, o que é maior. De onde vai concluir-se que “o ser que não se pode pensar nada maior” não é “o ser que não se pode pensar nada maior”. E isto é uma contradição. Logo “o ser que não se pode pensar nada maior” existe na realidade (ANSELMO, 1973a, p.108).
Anselmo, após expor o argumento, vai, no capítulo IV, afirmar que ninguém que compreenda o que Deus é pode pensar que Deus não exista. E assim demonstra que há  duas maneiras diversas de pensar. Uma primeira maneira seria que quando se pensa uma coisa, se pensa a palavra que a significa. E uma segunda maneira de pensar seria que quando se pensa uma coisa, se entende ou se compreende aquilo mesmo que a coisa é. Assim, por exemplo, quem compreende o que são a água e o fogo, sem dúvida, não pode pensar que os dois elementos sejam realmente a mesma coisa. Mas se pensar apenas nas palavras água e fogo, pode imaginar as duas coisas como idênticas.
Estas duas formas de pensar que nos propõe Anselmo vão permitir-lhe sustentar a argumentação de que aquele que compreende o que é Deus é, e não apenas pense a palavra Deus, não pode pensar que Deus não exista. Quando se pensa a palavra que significa Deus, pode-se pensar que não exista, já que não se entende aquilo mesmo que é Deus. Mas quando se entende aquilo mesmo que é Deus, pensar que Deus não exista implica que o vocábulo Deus se emprega com uma significação estranha, por isso não se fala de Deus nem se lhe nega, ou sem sentido algum. Portanto, não se sabe ou não se pensa o que se diz; quer dizer, justamente, que se é um insensato. Logo, quem entende o que Deus é não pode pensar que não existe. (ANSELMO, 1973a, p.108)
Nesta demonstração, queremos captar o sentido do argumento anselmiano. Uma vez definido o Deus da fé, o crente se encontra com a existência daquele que é posta em questão pela negação do insipiente. Procede, então, contestar este questionamento. Para isso, o insensato deve entrar no jogo dialético. Quando Anselmo dá sua noção de Deus, o insensato a ouve e entende. O insensato pensa que o ser tal não existe. Logo, o ser tal existe pelo menos em seu pensamento. Este existir ao menos em seu entendimento, uma vez reconhecido, põe em ação o mecanismo da prova e dá passagem a que o ser tal exista também na realidade. Provada a existência de Deus, chega-se à afirmação da necessidade da sua existência.
Através da prova, o crente alcança a inteligência. Somente aquele de quem não se pode conceber que não seja, existe necessariamente. O que constitui um problema não é a existência de Deus, mas sua negação. O insensato diz em seu coração que Deus não existe. Mas como diz o insensato em seu coração o que não pode pensar? Santo Anselmo responde dizendo que ninguém que entenda o que Deus é, pode pensar que ele não existe. A resposta de Anselmo estabelece uma distinção nesta ordem de pensamento, da palavra interior, donde uma relação de significação liga as palavras com as coisas. Esta relação palavras-coisas (voces-res) fazia parte da questão dialética da época. De uma mesma coisa, pode-se pensar que a palavra que a significa, ou bem compreender aquilo mesmo que é. O intelecto se conduz de maneira diferente, segundo se detenha em palavras ou que se realiza sua significação e se volte para as coisas. Anselmo, quando formulou uma definição de Deus, afirmou que seu adversário ouvia e compreendia, no seu intelecto, o que ele dizia. Permaneçamos no plano de um pensamento ligado à linguagem, donde a fé regula o sentido do termo Deus. Pois seguindo esta regra não poderemos conceber que o objeto não seja.

A força do argumento

O famoso argumento anselmiano não é mais do que uma pura dialética, onde o pensamento não pode negar a existência de Deus sem trair a si mesmo. Uma vez aceita determinada definição de Deus, esta impede, de antemão, qualquer negação, a não ser que não compreendamos o significado das palavras de determinada definição. Portanto, aqui se trata somente de demonstrar que o insensato, que é a parte contrária desta disputa, se contradiz.
Para Anselmo, se é contraditório negar algo, então este algo existe. Aqui o filósofo escolástico manifesta a sua grande confiança na lógica. Quando fala da verdade e da existência de Deus parece, ao menos nesta passagem, que a verdade lógica é a que designa e nos garante a verdade ontológica. Tomado em si mesmo, o argumento se baseia somente na lei do raciocínio. O argumento ontológico se funda na discussão que faz com que a verdade de uma proposição resulte do absurdo da que a contradisse.

 
Esta definição da existência de Deus é, seguramente, o triunfo da dialética pura operando sobre uma definição. Não por isso, deixa de ter conteúdo, porque o que contém de força provém do sentimento, justo em si do que há de único no conceito de ser tomado em um sentido absoluto. Pois, ainda que se rejeite a prova como tal, se reconhecerá sem dúvida que Santo Anselmo tenha visão certa ao subtrair à força irresistível com que a noção de ser absoluto, quer dizer, tal que não se pode conceber outro maior, reclama, de certo modo, a posição de sua existência pelo pensamento que a concebe. (GILSON, 1987, p.231).

Para Anselmo, os pensamentos comportam a presença de algo no pensamento. E se o que constitui ao menos um conteúdo do pensamento não pode ser concebido simplesmente como um conteúdo do pensamento, então o que existe no pensamento tem que ser mais que um conteúdo do pensamento.
A força do argumento também pode ser percebida na verdade das proposições necessárias, ou seja, as proposições cuja negação traz consigo contradição, são, necessariamente, verdadeiras - considerando que as proposições verdadeiras têm de ajustar-se a seus objetos e têm de ter objetos para ajustar-se. Portanto, as proposições necessárias implicam a existência de seus objetos. Neste caso, a proposição necessária é que “aquele do qual não pode ser pensado nada maior” não pode existir somente no pensamento.

 

Argument’s exposition – homage 900 years Anselm’s death.

Abstract:In the Middle Age not only cathedrals were constructed, but an extraordinary school system was also developed, universities were created and great works of philosophy, theology and literature were written. The ontological argument t of Saint Anselm (1033-1109) confirms the importance and depth of medieval reflection. That single argument is the one that appears in chapter 2 of the Proslogion. We owe the curiously unhelpful name “ontological argument” to Kant. The medievals simply called it “that argument of Anselm’s” (argumentum Anselmi)..

Keywords:God. Anselm. Argument. Ontological. Dialectic.

 

1 Doutor em Filosofia (PUCRS/Pádova). Professor Adjunto no Departamento de Filosofia e Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Pelotas. E-mail: srstrefling@gmail.com

Referências:

AGOSTINHO, De doctrina christiana, L. VII. Madrid: Editorial Católica, 1968.

ANSELMO.  Proslógio. São Paulo: Victor Civita, 1973. (a)

______. Resposta de Anselmo a Gaunilo. São Paulo: Victor Civita, 1973. (b)

______. Monológio. São Paulo:Victor Civita,1973. (c)

ESCRIBANO, I. El alcance teológico del Proslogion de San Anselmo. .Madrid: Verdad y Vida, 1965.

GILSON, E. La filosofia en la Edad Media. Madrid: Gredos, 1987.

ULLMANN, R. A. Epicuro: filósofo da alegria. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1989.

VASCONCELLOS, Manoel. Fides Ratio Auctoritas.O Esforço Dialético no “Monologion” de Anselmo de Aosta: As relações entre fé, razão e autoridade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005.

ZAMBRANO, M. El pensamiento vivo de Sêneca. Madrid: Cátedra, 1987.