O CORPO NA IDADE MÉDIA SE ENTREGA AO DESEJO NA LITERATURA

Virgínia Lopes Araujo 1

 

Resumo: o banho e a higiene não têm espaço considerável nos livros de História. Mesmo assim, na literatura, eles podem ser parte fundamental para entendermos um pouco mais sobre a vida e o imaginário da sociedade medieval. Como esses aparecem nas as novelas da Idade Média; como apresentam seus cavaleiros e damas; como descrevem seus corpos e seus desejos passam a ser pontos de vista privilegiados para este tipo de análise. Os hábitos de vaidade e cuidado com o corpo na literatura representavam realmente o cotidiano ou apenas expunham a realidade como ela deveria ser?

Palavras-chave:banho; corpo; sedução; literatura.

A ideia corrente de que a população na Idade Média não se banhava, ou sequer dedicava-se a qualquer hábito de higiene pessoal, encontra oposição na afirmação de Duby (DUBY e ARIÉS, 1990, p.518) sobre a banalidade da prática do banho na época. No entanto, pode-se pensar em um pouco de exagero em relação a tal comportamento, considerando-se a falta de água encanada e outras dificuldades, bem como a incidência de epidemias devidas à insalubridade. A afirmação de Duby está baseada em Henry de Mondeville, médico na passagem do século XIV para o XV.
Há poucas referências sobre o que se refere aos banhos e outras práticas de higiene na Idade Média, que poderiam até ser consideradas corriqueiras. Ao contrário do que a crença popular diz, o homem medieval era sim preocupado com seu corpo, seu cheiro e sua aparência. Numa época em que novas expectativas - tanto quanto no que se refere à classe social quanto à econômica - eram praticamente inexistentes, homens e mulheres aprenderam a utilizar o único bem realmente pessoal, o único que possuíam: o próprio corpo. Isto leva Duby a considerar o banho e também a sedução como meios para ascensão social, configurando, então, a prostituição. Logo, a conexão entre essa e o banho constituíam uma nova ameaça para as leis da Igreja e a moral Cristã. Assim, qual seria a verdadeira relação entre higiene, sedução, corpos e pecado? Por que o mito do “banho inexistente”, se a própria História hoje defende a existência das casas de banho? Qual é a representação desse banho na Literatura? Desejo ou repúdio?
Segundo Le Goff (2006, p.144), o banho era uma das principais ocasiões para a reunião familiar. Era comum que servas, mulheres e até homens, banhassem as crianças da casa, sendo ainda mais comum que as mulheres, a sós, banhassem seus maridos. A princípio, essa prática era tão natural que até mesmo o batismo cristão o utilizava. A pessoa que receberia este sacramento deveria estar dentro de uma grande tina cheia d’água, completamente nua, ao contrário do costume que se vê hoje. O banho contou, então, com muitos anos de aceitação moral e religiosa.
Herança da cultura romana, prédios especialmente preparados para oferecer ao público condições adequadas para o banho eram presença constante nas grandes cidades medievais. Elevadas sobre um chão aquecido por carvão em brasa e protegidas por paredes largas de pedras térmicas, as piscinas de água morna confrontavam o clima gélido da Europa, também estando totalmente opostas ao modelo precário de saneamento básico dessas mesmas cidades. Segundo Rossiaud, nelas, seria possível encontrar pessoas de todas as castas da população, principalmente os ricos, nobres e até mesmo membros da Igreja. Interessante ressaltar que tanto homens quanto mulheres e crianças banhavam-se juntos e despidos. A nudez era algo generalizado e comum. As estufas não eram somente destinadas aos banhos e terminaram por serem os lugares mais propícios para o adultério e a prostituição; na verdade, prostíbulos.
Não apenas de grandes piscinas, quartos vaporizados e barbeiros eram formadas as casas de banho. As estufas também eram conhecidas por servirem como “casas de baile e diversão” (LE GOFF, 2005), por assim dizer, abrigando moças de famílias pobres ou endividadas. Há relatos sobre Felipe da Borgonha que teria alugado uma dessas casas para receber uma comitiva inglesa. Na ocasião, os membros desse grupo foram recebidos por belas moças sedutoras e solícitas.

 
Os Banhos desta cidade vão agradar-vos muito. Se tiveres necessidade de lavar-vos e gostares de comodidades, podeis lá entrar com confiança. Sereis recebidos com amabilidade. Uma linda jovem vos massageará, em todo o bem e toda a honra, com mão suave. (...) Se o banho vos fatigar, encontrareis um leito para repousar. Depois, uma linda mulher, que vos não desagradará, com aspecto de virgem, arranjar-vos-á o cabelo com um pente habilmente manejado. Quem lhe não tomaria alguns beijos se lhe apetecesse e se ela se não defendesse? Se vos pedirem salário, um simples dinheiro bastará. .

Em pouco tempo, antes totalmente abertas, ganharam paredes que dividiam seus frequentadores e não é surpresa imaginar que essas moradoras tão exclusivas fossem expulsas. Essa era uma ação desesperada para proteger a ideia de local para lazer familiar que as estufas deveriam manter. Porém esta medida não funcionou por muito tempo e logo homens casados foram absolutamente proibidos de frequentar os banhos públicos.
Devido ao insucesso do controle da prostituição, escândalos envolvendo adultério e crimes contra a batina, as casas foram fechadas entre os séculos XV e XVI. Como justificativa, foi espalhado entre a população que a água quente e o vapor abriam os poros da pele enquanto o suor facilitava a entrada de germes no corpo. O banho causava doença para o corpo e alma. A solução encontrada pela Igreja para impedir o banho público e, por consequência, a prostituição e os rumores, foi o repúdio ao toque do corpo. Assim, a maioria da população, ignorante e apavorada, interrompe bruscamente suas visitas às estufas. Aqueles que insistiam em frequentá-las eram, na melhor das hipóteses, apontados como doentes ou hereges.
Assim como a destruição dos ginásios de esportes levou a crer que não era comum a prática dos exercícios físicos em grupo na Idade Média, a demolição e proibição das casas de banho medievais estão na origem da lenda de “Nenhum banho em Mil Anos”, como escreve Michelet em La Sorcière. Nesse contexto, A literatura novelesca medieval, partindo da oralidade para uma tradição de escrita no seu início, representa, junto às lendas em circulação, o imaginário popular que, se não representava opressão pela Igreja, significava opressão pela própria condição que marcava suas vidas. Ela funcionava, então, como uma espécie de válvula de escape, nem sempre mostrando o mundo como ele era, mas sim, como deveria ser.
Seguindo as contradições existentes entre os próprios autores, em sua grande maioria membros do clero, a literatura da Idade Média nos oferece uma rica estrada para interpretação: a constante luta entre o divino e o pagão, entre o que era um desejo natural e o que era visto como pecado; um misto, mesmo que imposto, de culturas pagãs e cristãs. A Europa vinha de uma época em que uma nova Igreja se instala com poder incontestável, forçando o apagamento de antigas crenças e costumes. Regras, aparentemente impraticáveis, são impostas, e todo o povo se esconde sob uma nova capa religiosa. Para que o controle da população fosse efetivo, e de maneira aparentemente pacífica, é cada vez mais difundida a noção de “pecado”; a mesma que nos é ensinada até hoje.
Não só o corpo feminino sofre com essas contradições. O corpo masculino também marca significativamente a relação entre belo e feio, não em relação ao corpo em si, mas em relação ao que se chamava alma. Gregório Magno chamou o corpo de “esse abominável vestuário da alma”, e defendia a ideia de que a carne humana deveria ser rebaixada, desprezada. Mesmo assim, cavaleiros como Lancelot são belos, e há uma preocupação para com a minuciosa descrição de cada parte do seu corpo nas obras de Chrétien de Troyes, monge francês, século XII. Igualmente, em obras similares, há representação de cuidados com os odores do corpo e os cabelos, por exemplo. Pele clara e macia, e cabelos longos e loiros eram sinais de beleza extrema. Sendo o corpo repudiado pela Igreja, pode-se dizer que há, então, uma forte ligação entre o desejo pelo mesmo e o pecado. “A inferioridade feminina provinha da fragilidade do sexo, da fraqueza ante os perigos da carne (...) o corpo mantinha o espírito prisioneiro, impedindo-o de se elevar em direção a Deus” (MACEDO, 1997, p.19).
É conhecida a história do triângulo amoroso entre Guinevere, Arthur e Lancelot, ou a da poção mágica responsável pela triste paixão entre Tristão e Isolda. Os grandes amores vindos das lendas celtas aí presentes estão na cultura Ocidental desde há muito tempo. É interessante notar que, nas suas várias versões, há cenas que representam o banho e, portanto o corpo, passando, no entanto, despercebidas, pois não fazem parte da trama principal ou não são importantes para o seu desenvolvimento. O interesse principal está no bestiário e nas lutas, não em algo que se considera tão banal, desprezando o envolvimento carnal das personagens.
Com a proibição e a destruição das estufas, é na literatura que se vê a representação dos banhos constituindo, porém, versões idealizadas da vida. Trazem de volta à realidade seus prazeres. Contudo, aquele não poderia mais ser considerado algo familiar e, muito menos, ingênuo. A literatura, de alguma forma influenciada pela Igreja, passa a ligar, então, a figura da mulher à do pecado. Cenas de banho, praticamente eróticas e, ao mesmo tempo, quase escondidas, apresentam personagens femininas servindo os cavaleiros. Assim, mesmo que o fascínio e o desejo pelo corpo sejam evidentes, o banho passa a ser, no mínimo, questionável. Por exemplo, Isolda banha Tristão após uma batalha, assim como acontece com Lancelote em “O Cavaleiro da Charrete” (Troyes). Mas, é nas obras criadas a partir do século XIII, principalmente, que essas passagens são ainda mais chamativas. Em “Roman de la Rose” leem-se linhas ainda mais marcantes. Grandes festas entre homens e mulheres de roupas transparentes que deixavam o corpo em evidência, levando-os ao toque, ao desejo, ocorriam em casas de banho: “É só por assim o desejarem / que tomam banho juntos.”
Em “Roman de la Viollete”, a jovem Euriaut tem seu banho espionado por um moço que ama, principalmente, seu corpo. Ainda mais marcante é o “Roman de la Flamenca” onde as personagens, amantes, utilizam as casas de banho para seus encontros proibidos.

 
[...] não nos surpreendemos de que a exaltação do corpo masculino possa dar lugar a hábeis cenas de sedução. No “Roman de la Flamenca” o sujeito masculino é apresentado com uma clara consciência do partido que pode tirar de seu corpo, de sua toalete, da displicência estrategicamente arranjada com vistas a uma sedução (DUBY, 1990, p.359).

Igualmente, Parsifal, do romance de Von Eschembach, está no centro de uma cena em que é banhado por mulheres.
As citações referidas talvez sejam, em grande parte, representações de um imaginário nas novelas. Estariam os banhos buscando higiene ou sedução? Não significaria o banho de um cavaleiro assistido por uma mulher uma relação de poder ainda mais forte do que o da Igreja? Seriam reais os cuidados com o corpo que aparecem nas novelas? A Dama Ociosa de “Roman de la Rose” tem hálito doce e trança ricamente seus cabelos, enfeitando sua cabeça com flores. Igualmente, Chaucer, em Miller’s Tales, descreve seu “Absalon” como um homem preocupado com a aparência. Mascar raízes e cabelos bem penteados eram suas armas para conquistar sua amada. “No decorrer da luta amorosa, não vos deixeis beijar, pois o odor desagradável incomoda mais quando estais excitado”.
“Se passasse por um banho e uma sauna, sua carne seria branca e macia”. Esse é o pensamento de uma jovem apaixonada por Orson em “Dit du lévrier”. Contudo, o sentimento de vergonha atormentava. Então, o nu masculino parece estar transcendendo o estatuto do pudor. Ele serve à problemática do conflito entre idealização, imaginário, realidade e corpo. “A finalidade principal é o jogo, ou mesmo a transgressão, a água é essencialmente festiva. O que significa que a lavagem não é a verdadeira razão do banho” (VIGARELLO, 1985, p.31). Ressaltam-se então, corpo e cheiro. Essas seriam armas de sedução importantes para a época - o que leva novamente a Mondeville.
O médico francês viveu nos finais do século XV, portanto, no mínimo dois séculos depois das novelas serem escritas. Com suas prescrições, indicava aos seus pacientes que mascassem ervas para evitar os maus odores da boca ou torná-los mais agradáveis, o que pode ser visto como a representação de uma consciência sobre a necessidade de higiene, que era associada à sedução. Receitava banhos com chá de folhas de violeta para evitar o cheiro do corpo, infusões de frutas para clarear a pele e até mesmo receitas para clarear os cabelos. Estaria Mondeville sendo fiel à realidade ou apenas reproduzindo o imaginário antes presente na literatura?

Texto não revisado pela autora.

 

 

Abstract:bath and hygiene do not have a substantial space in History books. But in Literature they might be a fundamental step to understand a little more about the lives and imaginary of the Middle Age’s society. How do the novels of this age shown the baths, bodies, cavaliers and ladies; how they describe the bodies and desires. Does the care of body and beauty in literature really represent the quotidian or just shows the reality as it should have been?

Keywords:bath; body; seduction; literature.

 

1 Aluna de graduação em Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. Orientadora: Profa. Dra. Elisabete Peiruque. E-mail para contato: sspectrumm@gmail.com.  

Referências
DUBY, Georges e ARIES, Philippe. História da Vida Privada – da Europa feudal à Renascença (vol.2). São Paulo: Companhia das Letras, 1990.

LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2005.

LE GOFF, Jacques e TRUONG, Nicolas. Uma História do Corpo na Idade Média. São Paulo: Civilização Brasileira, 2006.

MACEDO, José Rivair - A Mulher na Idade Média. São Paulo: Contexto, 1997.

ROSSIAUD, Jacques. Prostituição na Idade Média. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

VIGARELLO, Georges. O Limpo e o Sujo: A Higiene do Corpo desde a Idade Média. Lisboa: Fragmentos, 1988.