ENTREVISTA COM SIDNEY CHALHOUB

 

Atílio Bergamini*, Eliete Lucia Tiburski** e Icaro Bittencourt***

 Em uma breve visita à Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em maio de 2008, na qual proferiu a conferência intitulada: História e Crônica: Machado de Assis, Sidney Chalhoub, historiador doutor pela Universidade Estadual de Campinas, autor dos livros como Trabalho, Lar e Botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Epoque, Visões da Liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte e maisrecentemente, Machado de Assis, historiador, entre outros, nos recebeu, gentilmente, para uma entrevista. Muito simpático e brincalhão, conversou durante uma hora sobre história, seus livros, escravidão e problemas brasileiros.


Revista Aedos (RAE): Uma das linhas de pesquisa do programa de pós-graduação em História da UFRGS intitula-se “Relações Sociais de Dominação e Resistência”. Uma das leituras obrigatórias dessa linha é o seu livro, Cidade Febril. Como este tema abrangente da dominação e da resistência perpassa o conjunto de sua obra?
Sidney Chalhoub (SC): Desde Trabalho, Lar e Botequim, escrito nos anos 80, o que me interessa são questões de política de domínio na sociedade e o modo de as pessoas lidarem com essa dominação: por história social eu entendo a necessidade de que as pesquisas históricas incluam a questão do que as pessoas fazem com o que fazem delas. Por um lado, é importante entender as políticas de dominação enquanto uma série de elementos presentes numa sociedade específica que conduzem a procedimentos de exclusão, de reprodução das desigualdades sociais, estruturas que reproduzem a distribuição desigual de recursos, privilégios, e como essas coisas mudam ao longo do tempo. Por outro lado, o que caracteriza a história social é incluir nesse universo a questão do que as pessoas fazem com o que fazem delas. Esse é o elemento que está presente em todas as pesquisas históricas que eu fiz até hoje, mesmo recentemente nos trabalhos utilizando literatura, como no Machado de Assis, historiador. Busco entender como a literatura de Machado representa, produz interpretações sobre como os dependentes, agregados, escravos lidavam com a política de dominação senhorial, paternalista, com as práticas e ideologias de dominação características da sociedade escravista brasileira.
Em Trabalho, Lar e Botequim havia uma cristalização menor dessas divisões entre perspectivas teóricas, não havia muito problema em incorporar num mesmo trabalho elementos foucaultianos, thompsonianos, que depois foram se cristalizando nessas igrejinhas que existem hoje na academia. Naquela época era importante ler Foucault e Thompson, bem como incorporar uma leitura da tradição antropológica, para lidar com a ideia de cultura, interpretada como cultura dos trabalhadores, dos escravos. Hoje em dia tudo cabe na palavra cultura. Naquele período ela estava muito ligada às pesquisas sobre valores, práticas, modos de comportamento dos subordinados, subalternos, trabalhadores, escravos, diante daquelas políticas de dominação. Acredito que uma leitura classista da sociedade ainda faz sentido, ao lado de outras, válidas e esclarecedoras também.  Uma perspectiva marxista do processo histórico permanece importante. Esse é um fio condutor no meu trabalho, mas várias coisas acontecem e vão mudando as perspectivas e o modo de fazer.
No caso da escravidão, Visões da Liberdade é um livro muito voltado para as experiências dos escravos diante das instituições e dos modos de dominação que se encontravam na escravidão brasileira.  Considero aqueles escravos enquanto ladinos, quer dizer, investigo o modo como eles aprendiam a lidar com as práticas de dominação da escravidão brasileira no século XIX. Mais recentemente, as pesquisas mais interessantes sobre escravidão são aquelas que partem da constatação de que a escravidão brasileira, até bem avançado o século XIX, era prioritariamente africana, e africana de várias etnias. Toda a influência do Thompson na historiografia social sobre a escravidão encontra certo limite nessa virada dos estudos sobre o tema. Nesse sentido é importante lidar com as duas dimensões, uma mais classista, de como esse escravo ladino lida com o que ele encontra do ponto de vista das possibilidades políticas, e ao mesmo tempo prestar atenção ao legado africano e como ele é rearticulado numa realidade completamente diferente. Cidade Febril foi minha tentativa de lidar com esse legado africano, de incorporá-lo à visão política dos populares. O terceiro capítulo, sobre varíola, vacina, incorpora essa perspectiva que desde o início dos anos 90 tornou-se muito forte na Unicamp, em grande medida por causa da influência de Robert Slenes. Sobre Visões da Liberdade, Robert Slenes brincava comigo ao dizer jocosamente que era um ótimo livro, muito bem argumentado, muito bem orientado (ele orientou meu trabalho), mas cujos escravos podiam muito bem ser noruegueses, ou seja, a africanidade passou longe. Então, em certo sentido, Cidade Febril foi um esforço, em especial no terceiro capítulo, de lidar com essa carência que é evidente em Visões da Liberdade. 
RAE: Como os desdobramentos atuais dos estudos sobre a escravidão o auxiliaram na sua leitura de Machado de Assis, conforme demonstra o seu livro Machado de Assis Historiador, quando problematiza a noção de paternalismo e a abordagem de Roberto Schwarz?
SC: No livro, eu acho que deixei menos claro do que deveria, talvez, minha diferença em relação aos trabalhos de Roberto Schwarz e John Gledson. Por um lado, naquele momento, havia um reconhecimento claro de que uma parte da crítica literária interessa muito ao historiador porque ela incorpora como necessidade da interpretação do texto literário, no caso, os textos do Machado, as referências históricas diretas, bastante pesquisadas pelo Gledson. Também nos interessa a perspectiva de Schwarz de que a forma do texto literário é de alguma maneira uma expressão da lógica social, que tal forma tem um conteúdo social que precisa ser objeto de investigação do estudioso do texto literário. Ao escrever meu livro sobre Machado reconheci essa dívida intelectual com o Schwarz e o Gledson, mas acho que fui menos claro do que deveria quanto ao que me separa deles− depois, pelas leituras que fazem do livro, você começa a considerar que algumas coisas deveriam ter sido mais explicadas.
Existem várias diferenças, posso mencionar algumas. Uma primeira diferença: Roberto Schwarz, ao conceber o Ao vencedor as batatas e depois Um mestre na periferia do capitalismo, tinha disponível sobre a sociedade brasileira do século XIX os trabalhos de Fernando Henrique Cardoso, Capitalismo e escravidão no Brasil Meridional, e o de Maria Sylvia de Carvalho Franco, Homens livres na ordem escravocrata, um falando sobre escravidão, o outro sobre o universo dos homens livres pobres. Desses dois livros, à luz de tudo o que se tem escrito e estudado sobre a sociedade brasileira do século XIX nos últimos 20 ou 25 anos, do acúmulo de produção, eu diria, com um pouco de maldade, mas não muita, que não resta quase nada. Do ponto de vista da representação da escravidão, abordei em Visões da liberdade a construção da teoria do escravo-coisa, essa dificuldade em investigar o escravo como sujeito político. Isto quanto ao livro de Fernando Henrique Cardoso. No caso de Maria Sylvia de Carvalho Franco, havia a perspectiva da experiência da dependência nessa sociedade como uma experiência de falta de regras, de violência desregrada, de anomia, que não se sustenta, inclusive na própria leitura dos processos criminais que ela usa. Dialoguei bastante com o livro de Maria Sylvia já em Trabalho, lar e botequim. Ela estuda os processos criminais e descobre neles uma lógica de violência na sociedade caipira do interior de São Paulo. Em Trabalho, lar e botequim há uma preocupação muito explícita em mostrar como aquela violência que aparece nos processos é muito regrada, é informada por uma série de concepções a respeito do que é legítimo, do que é justo, que os populares mobilizam. A solução violenta de conflitos é uma das possibilidades dentro de um universo muito variado de regras de conduta. Enfim, o texto de Maria Sylvia é metodologicamente complicado e interpreta a sociedade brasileira oitocentista de modo equivocado, só pertinente, talvez, àquele momento de discussão a respeito do assunto.
Voltando ao Roberto Schwarz, esses eram os textos que ele tinha disponíveis, digamos, para montar o tipo de análise que aparece em Ao vencedor as batatas. Já na introdução, “As ideias fora do lugar”, há uma série de problemas conceituais que comprometem toda a arquitetura da interpretação. Ele parte de três conceitos - escravidão, favor e liberalismo - para construir a ideia de que a literatura brasileira do século XIX não tematizava a escravidão porque tal instituição seria contrária à civilização, ao progresso, e era embaraçoso abordar esse tema, constrangedor para o Brasil diante do mundo Ocidental, inviável para uma literatura que queria participar na construção de uma identidade nacional. O favor seria um nexo possível de abordar – mais simpático, segundo a expressão que ele utiliza.
Um problema importante no raciocínio de Schwarz é a contraposição radical entre escravidão e liberdade, construção ideológica do século XIX que impossibilita ver a atuação política dos dependentes em geral – escravos e livres. Para começar, com frequência as fronteiras entre escravidão e liberdade eram muito tênues na experiência dos negros no século XIX, tênues mesmo para o homem livre pobre em geral, que quando não era negro continuava a ter a sua liberdade ameaçada pela prática do recrutamento forçado (às vezes visto como outra forma de escravidão ou trabalho compulsório em documentos da época). Na sociedade escravista brasileira era possível revogar alforrias concedidas, a escravização ilegal era rotineira, o risco de retornar à escravidão por suspeita de ser “escravo fugido” era lancinante para muitos. Havia também a prática comum da alforria condicional, que deixava sempre uma massa de indivíduos numa situação intermediária, incerta, entre a escravidão e a liberdade. E liberdade era conceito complicado, limitado pela ideia de vadiagem e pelo procedimento rotineiro do poder público de utilizar o trabalho de prisioneiros, sentenciados ou não, em obras públicas e serviços públicos diversos – além do recrutamento forçado, outro limitante da tal liberdade que já mencionei. Enfim, a marcação de uma divisão clara entre o universo da escravidão e o universo do favor cria problemas graves de entendimento da sociedade brasileira oitocentista. O que eu mostro no livro é que a política de domínio, do ponto de vista estrutural, é semelhante nos dois casos. A representação do subalterno, do inferior, do dominado, ou seja lá que nome você queira usar, o mostra como um dependente, e o escravo é pensado como o mais dependente entre os dependentes. No universo ideológico, digamos, a escravidão orienta a percepção de todas as relações desiguais como relações de dependência. É ela que estrutura até mesmo a visão do que é a experiência da liberdade, que pouco tem a ver com autonomia, com direito de ir e vir, mas sim com segurança na dependência, ou com menor precariedade na dependência. Quando você postula uma separação radical entre escravidão e favor, entre escravos e dependentes, você cria uma dificuldade grande para entender como essa sociedade de fato funcionava.
Há também em Schwarz uma definição totalmente abstrata de liberalismo, algo que nunca existiu em lugar nenhum. Quer dizer, liberalismo, do jeito como o Schwarz o imagina no texto famoso, “As ideias fora do lugar”, nunca existiu historicamente. Existiu só em teoria, nos textos dos clássicos. O liberalismo conviveu com a escravidão e outras formas de dependência no mundo ocidental ao longo de todo o século XIX, seja nas metrópoles, seja nas colônias, e tal estado de coisas continuou depois, no imperialismo muita vez genocida praticado a partir do final do século XIX. No Brasil, e alhures, a última trincheira de defesa da escravidão foi o liberalismo, defendia-se a escravidão em nome do direito constitucional à propriedade privada. Liberalismo e escravidão se combinaram historicamente, coexistiram, alimentaram-se mutuamente. O resto é abstração teórica, talvez conveniente, apenas. 
Então essa distinção rígida acarreta uma porção de problemas. De novo, com um pouco de maldade, mas só um pouco, interpreta-se essa sociedade apenas a partir dos desejos e do imaginário da casa grande. A ideologia senhorial se projeta sobre a realidade inteira, a fantasia dos senhores de criar um mundo ao seu talante torna-se, por exemplo, o capricho ou a volubilidade de Brás Cubas. Ora, na prática, no cotidiano da dominação, o proprietário que imaginava que os escravos não eram alteridade em relação a ele arriscava o próprio pescoço. Para governar os seus trabalhadores – dependentes livres e escravos -, o senhor de terras e de gente tinha de lidar politicamente com os escravos e os agregados, vê-los como sujeitos políticos capazes de impor limites aos castigos físicos, reivindicar alforrias em determinadas situações. O senhor de escravos sabia que tinha a prerrogativa da violência, que podia torturar trabalhadores, que podia comprar e vender escravos, decidir libertá-los ou não; mas também sabia que essas prerrogativas eram regradas por tensões cotidianas, vazadas pela questão da luta de classes, informadas pela percepção que os escravos tinham de sua condição, o que impunha certos limites ao modo como esse domínio se exercia. Nenhum senhor de escravos real jamais poderia prevalecer, exercer domínio, sem reconhecer no escravo um sujeito político, com o qual ele tinha de lidar.
Vejamos, por exemplo, a questão da volubilidade do narrador nas Memórias póstumas, tão central à interpretação que Schwarz oferece para o romance. Por um lado, a leitura de Schwarz enriquece o sentido do romance ao mostrar o caráter classista da visão de mundo do narrador, que expõe sem peias a ideologia senhorial, o modo como a classe senhorial imaginava o mundo, como ela gostaria que ele fosse. Por outro lado, quando Machado imagina um narrador em primeira pessoa, ele coloca no centro das possibilidades de leitura a questão do limite de perspectiva do narrador. Esse limite de perspectiva, até onde vai o Schwarz, é um limite de perspectiva oriunda da ideologia de classe desse sujeito. Todavia, como tal visão é ideológica, classista, limitada por esses parâmetros, esse narrador, à revelia de suas intenções, informa muita coisa que acontece ao redor dele e que ele não logra interpretar como alteridade em relação à sua própria maneira de ver as coisas. É como se Machado construísse o texto para requerer do leitor que ele lesse o testemunho ficcional de Brás Cubas como um testemunho histórico. Ou seja, é preciso ler o texto à revelia da intenção do narrador ficcional.
Por exemplo, seria possível contar uma história das dificuldades de entendimento do Brás sobre o que ocorre ao redor dele acompanhando a história da relação dele com as mulheres. É o que faço no terceiro capítulo do meu livro. Sem a perspectiva das mulheres, em geral exposta à revelia do narrador, eu não teria feito nada, porque é por meio delas que Machado cria condições de o leitor entender os limites da visão do narrador senhorial. No caso da Marcela, Brás só entendeu que ela fazia gato e sapato dele quando o pai o colocou a bordo de um navio para mandá-lo embora porque ele já tinha gasto muitos contos de réis com ela. Aí o narrador reconhece que foi enganado porque aprendeu por meio do pai dele que ela o tinha passado para trás. Quanto a Eugênia, ele nunca consegue sequer ter a ilusão de que a domina, o que o deixa muito perturbado. Foi a única mulher que Brás correu o risco de amar na vida, de fato. Ela representava uma alteridade irredutível, olhar altivo, alguém que não se deixaria dominar por ele e não fazia segredo disso. Para lidar com tal desafio, que inviabilizaria o seu ideal de domínio sobre as mulheres, Brás precisa livrar-se dela a qualquer custo, exorcizar a atração que sente por ela. Logo embarca em toda uma justificativa ideológica para desqualificá-la: ela é coxa e não pode, portanto, garantir uma reprodução higiênica; ela é filha natural, impura, não está socialmente à altura dele; enfim, ele tem que articular um discurso de negação do outro (ou da outra, mais precisamente) porque não tem como lidar com a ideia de alteridade. É a saída ideológica dele, mas a alteridade está lá, o tempo todo, para quem quiser ver; é ele, Brás, que não pode ou não quer ver. No caso de dona Plácida, é difícil imaginar alguém mais humilhada, mais desprovida de qualquer tipo de poder, mas é fácil demonstrar que havia uma porção de coisas que Dona Plácida fazia sem que Brás se desse conta. Coisas que ela fazia para obter o que interessava a ela, à revelia da vontade de Brás. Por exemplo, há aquela passagem em que Brás e Virgília têm um arrufo e dona Plácida diz que Virgília chorara muito devido à situação. Quando Brás encontra Virgília no dia seguinte, ele pede desculpas por tê-la feito chorar. A reação de Virgília é mais ou menos a seguinte: “Como assim? Jamais chorei por causa de você! Cresça!” (Risos). Aí Brás desconfia que Dona Plácida não fora fiel à verdade ao descrever a reação de Virgília, mas ele não consegue transformar isso num tema, em algo que ele precise compreender. Essa é a diferença entre Brás Cubas e Dom Casmurro. Dom Casmurro, situado em outro momento histórico, após o fim da escravidão e da monarquia, havia aprendido alguma coisa sobre antagonismo social, sobre a resistência dos dependentes. Então ele vira ideologia de classe com intenção de dolo.
Então, para fechar essa parte, há muitos aspectos nessa relação entre forma literária e lógica social que ficam ausentes da leitura do Schwarz porque o que ele tinha disponível para interpretar a sociedade brasileira do século XIX não permitiu que ele imaginasse outras possibilidades de interpretação dos textos machadianos. Eu poderia ter deixado isto mais claro no meu livro, como o faço quando dou aulas sobre o assunto. Meu livro sobre Machado, na verdade, foi construído em sala de aula, foi concebido ali. Em geral começando por uma leitura lenta de “As ideias fora do lugar”, durante duas ou três aulas, para dissecar cada parágrafo do texto, para mostrar porque ele não funciona como leitura da sociedade brasileira do século XIX.
RAE: Os seus trabalhos apontam para uma diversificação de abordagem dentro da história social, incluindo as relações de trabalho, literatura e a abordagem das doenças e práticas de cura. Outro aspecto importante parece ser o recuo temporal na abordagem desses temas, dando privilégio ao contexto da segunda metade do século XIX. O senhor concorda com essa caracterização de sua obra? E quais os possíveis desdobramentos desses elementos no que se refere a novas abordagens e novos temas para a sua pesquisa?
Quanto ao recuo temporal, há maneiras, digamos, jocosas e autoirônicas de dizer o que aconteceu (mas que são verdadeiras). Escrevi Trabalho, lar e botequim usando processos de homicídio da primeira década do século XX. Tive dificuldade de perceber mudanças históricas. Como mencionei na introdução de Visões da liberdade, só abordei mudanças em Trabalho, lar e botequim numa perspectiva muito estrutural. Então tive a ideia (muito criativa!) de espalhar as fontes no tempo, pois talvez assim passasse a perceber transformações históricas. Aí está o caminho que me levou à escravidão urbana em meu segundo livro. Hoje em dia sempre digo aos meus alunos que não percam nunca a chance de analisar alguma série documental espalhada por algumas décadas, porque assim se aprenderá algo sobre como as coisas variam no tempo. Esse procedimento puramente empírico pode dar origem a questões importantes de interpretação do processo histórico estudado. Em certo sentido, continuo indo para trás. As pesquisas que tenho feito agora, sobre escravização ilegal, utilizam fontes da primeira metade do século XIX, da década de 30, 40, 50.
No geral, porém, digo que sou um historiador social do século XIX brasileiro. Tudo do Oitocentos me interessa, do teatro lírico à escravidão. O desafio, cada vez mais, é ver o vínculo entre essas coisas – por exemplo, entre um texto machadiano, com todo seu investimento literário e distanciamento aparente da realidade, e documentos sobre escravização ilegal, entender como esses testemunhos históricos se articulam. Então acho que dificilmente conseguirei sair do século XIX, pois ainda há aí muito que eu tenho curiosidade de aprender.
RAE: No caso das crônicas, A Semana e Bons Dias, que foram utilizadas e analisadas também por Gledson, como o Senhor dialoga com ele?
Em primeiro lugar, minha dívida com Gledson é grande em relação às crônicas, porque eu me interessei por elas lendo os volumes que ele organizou. Ter as crônicas anotadas, com referências a fatos e personagens que aparecem nos jornais, é essencial para tornar esses textos legíveis para nós. Durante muito tempo eu dialoguei com o Gledson a respeito desses textos, mas esse diálogo não caminhou bem, pois ele compartilha de uma visão, que é muito comum na crítica literária, de tratar a crônica como gênero literário menor. Gledson não compartilha a hipótese de que há muita elaboração literária nesses textos, de que Machado constrói narradores neles que são personagens fictícias da história real. Esses narradores são uma alteridade radical em relação a Machado; não se pode confundir as ideias e ironias do narrador com as de seu autor. Há aí mediações inescapáveis, ou haverá sempre o perigo de ler as crônicas como testemunho mais ou menos direto das ideias do próprio Machado. Digamos que eu discorde do Gledson, crítico literário, por razões literárias – ou seja, acho que ele investe menos do que devia, no caso das crônicas, no sentido literário dos textos.
Isto não quer dizer que narrador de crônica é como narrador de romance. O narrador da crônica obedecia a um protocolo específico. Machado concebia um projeto para cada série, inventava um pseudônimo, atribuía um título à série, adotava algumas características retóricas para o discurso daquele narrador ficcional; enfim, criava uma personagem que se tornava testemunha fictícia da história real. Isto é diferente de narradores de romances, como Brás Cubas ou Dom Casmurro, que constroem a posteriori uma leitura de suas vidas. O projeto do narrador de crônica incorpora ao seu modo de ser a indeterminação do futuro, a incerteza sobre o sentido dos acontecimentos que testemunha. A situação é muito diferente do narrador de Dom Casmurro, que tem toda uma estratégia de texto da primeira à última linha. A estratégia do texto do cronista não pode estar formada, organizada dessa maneira, porque a história sobre a qual ele vai escrever ainda não aconteceu, ou está a se desenrolar à sua frente. Logo, minhas diferenças em relação ao Gledson na leitura das crônicas são radicais mesmo, pois acho que a leitura dele de fato insiste em ignorar o que há de elaboração literária nas crônicas do Machado. Você pode ver, nas introduções dele às crônicas anotadas, que essa questão nem se coloca, ele nem concebe isso como problema. O livro que na verdade chamou a atenção para isso foi o de Leonardo Pereira, Carnaval das Letras, no qual há um capítulo esclarecedor sobre a série Bons Dias, que Machado escreveu no final dos anos 1880. Mas esse debate é, à primeira vista, um pouco estranho, pois estou eu aqui, como historiador, a cobrar um olhar mais literário de um crítico literário. A estranheza, porém, não resiste a um minuto de reflexão sobre a prática atual do ofício de historiador. Nós sabemos, como historiadores, que todo o texto é uma narrativa, no sentido de ter que ser analisado nas suas intenções, nos seus protocolos, no seu modo retórico, na sua interlocução com outros textos. No caso da literatura, esse modo de fazer é literário e tem de ser analisado enquanto tal; um texto jurídico é informado por uma cultura jurídica pertinente, que o historiador tem de aprender a dominar para interpretar o sentido de seu testemunho; um ato administração acontece no bojo de cultura administrativa particular, que também tem de se tornar familiar ao historiador, e assim por diante. Em todos os casos, o historiador tem uma pauta semelhante de perguntas, mas as respostas serão sempre diferentes. Machado de Assis escreveu textos burocráticos, contos, crônicas, romances, poesia, teatro. Cada um desses gêneros oferece desafios próprios de interpretação. Esse autor real, Machado de Assis, criou uma série de autores ficcionais, autores modelos, putativos. E mesmo quando assinava o próprio nome, Machado de Assis, o fazia em gêneros diferentes, que impunham condições ao que podia ser dito, e como poderia ser dito, em cada um deles. O Machado de Assis que assinava uma crônica era muito diferente do que assinava um parecer do ministério da Agricultura. O mesmo autor real não era o mesmo autor-modelo em casos tão diferentes, em gêneros tão distintos. Pense, por exemplo, em José de Alencar, que escreveu crônica, romance, fez muitos discursos no parlamento, produziu textos de interpretação política, falou de tudo. É o mesmo Alencar de sempre? Sim e não. Em cada gênero, o exercício é totalmente diferente. Há algumas coisas que podem ser ditas num gênero e não em outros, e vice versa; há possibilidades que cada gênero faculta ou limita, e é isso que acarreta diferenças nas respostas às quais chegamos ao analisar os textos ou intervenções do mesmo autor real. Cada autor real pode ser uma multiplicidade de autores, reais ou fictícios, pronunciando-se em gêneros literários ou não.
Nada disso precisa levar a um ceticismo radical quanto à referencialidade do texto analisado, seja qual for o seu gênero; a cognoscibilidade de um testemunho, o modo como dá a ver a realidade alémtexto, não está em causa quando nos dispomos a ir fundo na análise de seus protocolos narrativos. Hoje em dia, a melhor maneira de chegar à verdade no conhecimento histórico é levar às últimas consequências os desafios relativistas. Se o texto é um artefato, um artifício, tanto melhor; ao analisá-lo enquanto tal, saberemos, quiçá, mais sobre o que há além dele, sobre a realidade à qual pertence de modo inescapável. O relativismo pós-moderno radical chique, enquanto epistemologia, é tentativa de transformar o vazio em conceito; é como atribuir a subnutrição a uma opção dietética, como li noutro dia num texto do Nelson Aguilar sobre os vazios da Bienal de São Paulo. Por outro lado, para o historiador social, o relativismo transformado em metodologia, em modo de interrogação do testemunho, é uma oportunidade, maior possibilidade de conhecimento verdadeiro – isto é, comprometido com a crítica e a transformação da sociedade. 

* Mestrando em Letras na UFRGS com a pesquisa “O Legado de Brás Cubas”. Endereço eletrônico para contato: atiliobergamini@yahoo.com.br

** Mestrando em História na UFRGS com a pesquisa “Gonçalves de Magalhães e Francisco Adolfo de Varnhagen: a constituição de uma história do tempo presente no século XIX”. Endereço eletrônico para contato: elietelucia@hotmail.com

*** Mestrando em História na UFRGS com a pesquisa “Sociedades beneficentes operárias e formação do trabalho livre em Cachoeira (RS) na passagem do século XIX para o século XX”. Endereço eletrônico para contato: icarohistoria@gmail.com