UM MUNDO ÀS AVESSAS:
RELAÇÕES DE PODER E DOMINAÇÃO ENTRE OS OPERÁRIOS GAÚCHOS NA PRIMEIRA REPÚBLICA (1917-1919)

           
César Augusto Bubolz de Queirós 1

 

 

Resumo: Este artigo tem como objetivo problematizar a natureza da relação entre os operários grevistas e os trabalhadores não engajados, propondo a hipótese de que esta é uma relação de poder, intermediada por associações e lideranças que exercem – ou buscam exercer – uma dominação sobre o conjunto da classe. Pretende, ainda, discutir brevemente os fundamentos da legitimidade da autoridade destes agrupamentos sindicais e de suas ações, considerando que ações de violência eram consideradas meios legítimos para alcançar os fins da associação.

Palavras-chave:Operários. Greves. Violência.

As primeiras décadas do século XX foram marcadas por eventos que tiveram uma importância e uma influência enorme sobre o mundo contemporâneo e sobre a sociedade de um modo geral. A Primeira Guerra Mundial e a Revolução Russa provocaram efeitos avassaladores sobre o mundo capitalista, trazendo – além de uma crise econômica com escassez de gêneros alimentícios, inflação e desvalorização monetária – a influência de ideologias que questionavam sua própria existência e que propunham sua superação. Assim, a conjuntura de 1917-1919 é repleta de agitações sociais e greves que, impulsionadas pelo agravamento da situação social e influenciadas por essas ideologias, irrompem em vários países e regiões.
Entretanto, enquanto uma parcela do proletariado participava ativamente dessas agitações, exercendo uma militância nos sindicatos, participando das greves e assumindo uma posição de enfrentamento diante do patronato e do capital, reivindicando para si uma posição de resistência frente à exploração capitalista e à dominação econômica exercida pelos patrões, outra parcela da classe – por motivos que não cabe aqui discutir – continuava exercendo sua profissão, mesmo nos momentos em que o conflito entre capital e trabalho se mostrava mais explosivo.
Este artigo tem, portanto, a pretensão de problematizar esta questão: qual a natureza da relação entre os operários grevistas e os trabalhadores não engajados? E propõe uma resposta no sentido de que esta é uma relação de poder, intermediada por associações e lideranças que exercem – ou buscam exercer – uma dominação sobre o conjunto da classe. Pretende, ainda, discutir brevemente os fundamentos da legitimidade da autoridade destes agrupamentos sindicais e de suas ações, considerando que ações de violência eram consideradas meios legítimos para alcançar os fins da associação. Por fim, propõe analisar os meios utilizados por essas “associações de dominação” para fazerem valer as ordens e as determinações impostas/propostas por elas destacando o uso da violência física e simbólica como um meio de efetivar esta dominação.

Paredistas e Carneiros: uma relação assimétrica

Entre os pesquisadores que se incumbem de analisar o mundo do trabalho, é comum uma identificação da primeira posição – de adesão às paredes e de enfrentamento diante do capital – como uma posição de resistência à dominação exercida pelo capital, enquanto que a postura dos operários que dão continuidade ao trabalho é tida comumente como uma posição de submissão, de subordinação, de aceitação à dominação. O que normalmente não é enfatizado é que o que, de um ponto de vista, é tido como uma posição de subordinação aos interesses do capital, uma posição de servilismo e de resignação, de outro pode ser ressignificado como uma posição de independência, de neutralidade, de insubordinação frente à decisão das lideranças operárias, um ato emancipatório em que se recusa tanto a dominação exercida pelo patronato quanto a que é exercida pelas lideranças operárias sobre o restante da classe, um “não tomar partido” que resulta no enfraquecimento de uma das posições envolvidas na disputa. Contudo, não cabe a nós, historiadores, reproduzir esta cisão de maneira simplista, atribuindo atributos de coragem e luta aos grevistas e de submissão e covardia aos não grevistas (por mais que isso possa nos ser simpático) e nem advogar os motivos dos operários para continuar trabalhando. O que importa efetivamente é compreendermos de que modo estes agentes se percebiam ao longo deste contraditório processo social que coloca membros de uma mesma classe em posições antagônicas. Esta concepção simplista induz a uma apropriação estática das relações de produção e proporciona o que Thompson chama de uma “política de substituição”, na qual a classe é substituída por suas lideranças, uma “vanguardia que sabe mejor que la clase misma cuáles deben ser los verdaderos intereses (y conciencia) de ésta”(1979, p. 35), considerando o ato de aderir à greve como algo automático, natural, e que os operários só não aderiam por que não sabiam o que era melhor para eles. Há nesta visão uma inversão do paternalismo: os operários continuam sendo julgados incapazes de decidir o que é melhor para eles, mas nesse caso são as lideranças operárias – e não o Estado – o agente de seu bem estar.
Muitas vezes, estas lideranças nem sequer pertenciam à classe operária e sim a camadas médias urbanas. Na greve de 1919 de Porto Alegre, um dos principais oradores e articulistas dos jornais era Álvaro Masera, que era advogado. Segundo Aravanis – que, no segundo capítulo de sua tese, fez uma breve caracterização da militância gaúcha incluindo algumas notas biográficas sobre alguns dos principais militantes operários – alguns membros da militância operária do estado não eram oriundos da classe operária e sim advogados, intelectuais e jornalistas e que esses membros de ‘fora’ da classe compunham uma minoria com linguagem articulada (2005, p. 107).
Ocorre, deste modo, uma expropriação da voz (ou de outras vozes) do operariado que passa a ser percebido somente por meio de “porta-vozes” da classe, ou, como diria Bourdieu (1984, p. 49-55), o indivíduo recorre à alienação política para escapar da alienação política, ocultando a questão do fetichismo político e, apesar de constituir o grupo, perde o controle sobre o mesmo.           
Entretanto, a não adesão de uma parte considerável dos operários às paredes representava uma ameaça ao sucesso do movimento, o que levava os operários grevistas a exercerem uma pressão – física e simbólica – sobre estes trabalhadores. Deste modo, há um exercício de poder mesmo entre aqueles que, na esfera capitalista, encontram-se na mesma posição de subordinação econômica diante do capital.
Conforme Silva Jr (1995, p. 79) “as lideranças operárias, mesmo as anarquistas, estão também ‘em cima’ – onde, como de costume, os pesquisadores colocam apenas a classe dominante e/ou o Estado”. O autor salienta que “o sindicato não é simplesmente uma associação, mas uma associação de dominação, e que sua legitimidade não é somente aferida por sua penetração na categoria, mas também pela capacidade de obter obediência às ordens produzidas” (SILVA JR., 1996, p. 44). E para obter esta atitude de obediência, acaba usando de mecanismos e estratégias punitivas e coercitivas a fim de fazer valer a sua posição. Ou seja, mesmo entre aqueles que se encontram em uma posição subalterna diante do capital, existe uma relação de poder, o exercício de uma pequena – ou não – dominação exercida por aqueles que conseguem estabelecer uma liderança sobre o proletariado.
Portanto, o poder não pode ser só entendido quando relacionado à dominação capitalista ou ao poder do Estado. O poder encontra-se na vida cotidiana, em cada espaço de convivência e de sociabilidade, quando as relações sociais se apresentam – frequentemente – de modo assimétrico e heterogêneo, a distribuição dos diferentes tipos de capital não é igual nem mesmo entre aqueles que se encontram em uma posição subalterna. Essas relações de poder encontram-se entrelaçadas a outros tipos de relações – gênero, classe, etnia, parentesco – e geram condições gerais de dominação em determinados meios.
Convém destacar que, para Weber, existe uma dissociação entre poder e dominação uma vez que esta última está associada a um caráter consensual e que necessita da anuência dos dominados para ser exercida, enquanto que o poder é “a capacidade de impor a um outro desejos, vontades e interesses sem que o mesmo concorde ou possa obstar isso” (apud SANTANA, 1997, p. 226).
Enfim, as relações entre operários grevistas e não grevistas são essencialmente relações de poder, caracterizadas por uma luta simbólica pela representação do real e por uma disputa entre duas visões de mundo/posições distintas. Deste antagonismo entre grevistas e não grevistas emergem duas identidades diacríticas, antipodais, relacionadas à postura adotada diante do conflito capital/trabalho. Chalhoub (1986, p. 105) salienta que há uma diferença explícita nas concepções sobre a relação patrão e empregado entre grevistas e não grevistas, pois enquanto uma parcela da classe operária se identifica claramente com a defesa dos interesses do patronato, outro segmento da classe revela “uma consciência nítida de que os interesses dos patrões não são os seus”. A coexistência destas duas visões de mundo no ambiente laboral acaba por provocar uma nítida “controvérsia entre trabalhadores que percebem a relação patrão-empregado basicamente como uma relação de cooperação paternalista, e aqueles que a concebem como uma relação conflituosa” (CHALLOUB, 1986, p. 107). Contudo, acredito que a postura de não adesão de uma significativa parcela dos trabalhadores nas greves não pode ser entendida tão somente como uma posição de identificação paternalista com os interesses patronais e sim pode ser interpretada por aqueles que assumem tal posição como uma postura de independência, de neutralidade diante do conflito instaurado e, ao mesmo tempo, como uma simples descrença nos ideais coletivistas e sindicais dos paredistas, uma incerteza em relação às reais possibilidades de obtenção de retribuições materiais e um cálculo dos custos pessoais que a adesão a tal movimento poderia acarretar. O que não quer dizer que esta postura possa ser entendida somente em termos de uma “escolha racional” – e neste sentido a opção pelo paternalismo pode ser considerada como uma – mas sim compreender a recusa ao engajamento militante como resultante de um conjunto de possibilidades que vão desde a avaliação concreta das reais possibilidades de êxito, da consideração dos custos envolvidos e de elementos menos concretos, como a formação de vínculos de cooperação, de identidades e de representações sobre os grevistas.
Por outro lado, a postura de não adesão às paredes por parte dos “carneiros” era legitimada e defendida pelo patronato e pela imprensa burguesa, e o propalado direito à “liberdade de trabalho” vinha ao encontro dos interesses dos grupos sociais hegemônicos que buscavam de todos os meios deslegitimar tanto os movimentos grevistas quanto seus integrantes, afirmando que, no estado, a vida dos operários era boa, se comparada às condições enfrentadas no velho mundo, e que o operariado nacional estava sendo influenciado por elementos anarquistas estrangeiros ao nosso meio e que o bom operário não se deixava ludibriar por esses “maus elementos”.

Bases da Legitimidade do Poder

Analisando a questão das bases da legitimidade da dominação, Weber (apud COHN, 1991, p. 129) identifica três tipos de “dominação pura”: a dominação legal, a dominação tradicional e a dominação carismática 2. Contudo, não há um tipo “puro” de dominação, uma vez que, normalmente, a dominação se legitima sobre bases e elementos heterogêneos. No caso das entidades sindicais e operárias, existe uma base legal e estatutária que confere legitimidade às lideranças operárias, porém o aspecto carismático, afetivo e simbólico atua de modo significativo no exercício desta “dominação”. Entretanto, a estrutura sindical não dispõe de mecanismos coercitivos que possam impor suas decisões e sua vontade sobre o conjunto da classe, não havendo uma “punição” àqueles que descumprem as determinações do sindicato, de modo que este se obriga a tomar medidas de caráter privado como forma de impor suas decisões.
Estas medidas coercitivas de caráter privado assumem tanto formas de pressão simbólica e moral, ou seja, a depreciação da posição de não-grevista de modo que esta acabe sendo permeada de atributos pejorativos, gerando uma desqualificação moral do não-grevista e um constrangimento social; quanto características punitivas, em que o exercício da violência física se estabelece de modo a impedir a continuidade do trabalho e, ao mesmo tempo, possuem um caráter “educativo”, exemplar, o exercício de uma dominação não estatutária, mas que, do ponto de vista dos operários grevistas, é portadora de uma legitimidade moral.
Assim, freqüentemente a violência contra os “carneiros” torna-se um meio considerado legítimo para preservar o que as organizações operárias consideram como sendo os interesses da classe, e a violência sindical transforma-se em um instrumento racional para a solução destes conflitos. Esta violência pode materializar-se em ações físicas, punições corporais, ou em atitudes discriminatórias que atentam contra a moral e a dignidade dos operários que continuavam o serviço, estigmatizando-os e transformando-os em alvo de pilhérias, em merecedores do desprezo dos verdadeiros operários – os grevistas. Para Fortes (2006a), “o emprego de algum grau de violência na solução de conflitos trabalhistas pudesse ser considerado até mesmo natural”, havendo “limites naturais cuja quebra poderia levar os trabalhadores ao questionamento da legitimidade da própria luta operária”. Há casos – como o da greve dos padeiros de 1917 – em que a violência contra os não grevistas, enquanto esteve em um patamar “aceitável”, não sofreu críticas por parte da imprensa, como a atitude dos grevistas de assaltarem a carroça e atirarem nos cavalos para impedir o abastecimento de pão, a qual não gerou estranheza. Tanto é que a reportagem que noticia este fato começa salientando que o movimento estava “correndo com a maior normalidade”, apesar do desabastecimento e do ocorrido.
A própria natureza da condição de trabalhador não grevista – caracterizada por uma posição atomística, desinstitucionalizada – faz com que estes se transformem em alvos da disputa – simbólica e real – que ocorre entre as organizações operárias e o Estado por suas consciências, por seu apoio. Assim, esses operários são alvo de uma feroz disputa, na qual, de um lado, são coagidos tanto física quanto moralmente pelos grevistas para interromperem o trabalho, e, de outro, a repressão exercida pelo governo e pelos patrões transforma a opção pela adesão à mobilização em um risco à sua integridade física. Entretanto, não se pode esquecer que toda a relação de dominação é caracterizada por uma dialética entre dominantes e dominados, e que esses trabalhadores ainda possuíam uma margem de atuação, de protagonismo, não eram só objetos de uma disputa pelo poder, mas sim atores, agentes que faziam parte de um cenário em que conflito e negociação estavam constantemente presentes e o lado que obtivesse maior vantagem nesta disputa poderia usufruir de um maior poder de barganha e de uma posição mais confortável neste contexto.
Todavia, esta posição atomística e desinstitucionalizada leva a que estes atores não nos presenteiem com muitos registros de seus pensamentos e ações: não escreviam em jornais, não possuíam atas ou estatutos de associações, não produziam panfletos ou manifestos, enfim, não havia uma “associação dos operários fura-greves e carneiros” que pudesse produzir um material capaz de servir de fonte ao historiador que se dispõe a trabalhar com este tema. Os registros acabam sendo todos muito transversais, ocasionais, como no caso dos processos-crime com os quais trabalharei.
Ainda assim, De Certeau destaca que as lógicas da “cotidianidade” possuem um caráter tático, no qual seus atores – esses “heróis anônimos”, fragmentos representativos da realidade social – reinterpretam e recriam a realidade à sua forma, realizando um cálculo de ação dentro de um espaço caracterizado pela exterioridade, um espaço do outro. É conferida, portanto, uma dimensão política às práticas do dia-a-dia e essas ações cotidianas emergem como brechas que expõem “artimanhas e surpresas táticas: truques espertos do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’”. Neste sentido, a recusa de parte dos trabalhadores de se engajarem nas greves e paralisações pode ser entendida como uma tática de enfrentamento àquela situação de risco, um cálculo afirmativo baseado em uma leitura particular de uma determinada situação, na qual fatores como custos e retribuições estão envolvidos na participação nesta ação coletiva, uma vez que “o curso racional de ação [...] seria agir independentemente, ficar de braços cruzados e aproveitar os benefícios gerados pela ação de outras pessoas” (PIZZORNO, 1988, p. 372). Em contrapartida, as pressões exercidas sobre eles, as violências e ofensas que os coagiam a fim de que não trabalhassem eram percebidas pelos grevistas como instrumentos legítimos no sentido de alcançar os objetivos da greve, eram estratégias adotadas para que a opção pela continuidade do trabalho não representasse uma ameaça ao sucesso do movimento.

Instrumentos e Estratégias

Por fim, no último ponto deste trabalho, gostaria de analisar de modo bastante breve alguns instrumentos e estratégias utilizados pelos operários grevistas a fim de convencerem/coagirem os não grevistas a interromper o trabalho e aderir ao movimento. A adoção de posições antagônicas, antipodais, entre os próprios trabalhadores nos momentos de ascenso do movimento operário leva a que se estabeleça uma divisão, uma nítida separação entre “nós” e “eles”, onde construções identitárias são formuladas a partir do contraste entre posições individuais assumidas durante a greve. Assim, estas identidades são elaboradas através da atribuição de valores e classificações que visam deslegitimar e constranger através de uma linguagem própria àquele que, naquele momento, representa uma ameaça ao sucesso do movimento. A continuidade do trabalho por parte de um grupo de operários representa um risco que ameaça os êxitos do movimento paredista e essa situação acarreta um antagonismo, um conflito de interesses, que faz com que companheiros de trabalho vejam-se em posições distintas, opondo-se diametralmente. Antes colegas de trabalho e agora rivais encontram-se e acabam levando suas diferenças para fora da esfera em que elas foram produzidas, gerando conflitos e altercações visíveis hoje através de processos-crime que nos mostram a intensidade destas disputas.
Definem-se por oposição dois grandes grupos: de um lado, os operários militantes ou que nos momentos de ascenso mobilizatório integram os movimentos grevistas; de outro, os operários que se recusam a aderir às greves, uma legião de trabalhadores que não se envolve com os sindicatos ou associações e que não participa das paredes. É interessante observar que esta posição de não adesão por parte de um segmento da classe reforça e confere certa legitimidade ao patronato, ao mesmo tempo em que enfraquece a posição dos grevistas. É necessário considerar que a greve só faz sentido enquanto um instrumento de luta política e/ou econômica, quando “a re-situamos no campo das lutas do trabalho, estrutura objetiva das relações de força definida pela luta entre trabalhadores, de quem ela constitui a principal arma, e empregadores, juntamente com um terceiro ator – que talvez não seja um – o Estado” (BOURDIEU, 1983, p. 195). Quanto maior o número de trabalhadores que não cessam o trabalho, menor será o poder de negociação dos sindicatos e seus delegados. Neste sentido, Bourdieu (1983, p. 199) destaca que “uma das sutilezas da relação de força dominantes/dominados é que nesta luta, os dominantes podem utilizar a luta que ocorre entre os dominados”. Esta luta se corporifica nas relações entre os operários grevistas e os trabalhadores que não aderem às paredes. A postura de não adesão ao movimento é utilizada pela grande imprensa – de acordo com Bourdieu, representante da esfera “dominante” – com o objetivo de deslegitimar a posição dos paredistas e criar heróis, modelos a serem seguidos pelos operários, referenciais de coragem e honestidade os quais se recusam a seguir as orientações de elementos estrangeiros que estariam abusando da ingenuidade do verdadeiro operário. Estes “corajosos operários” – enfrentando a intimidação e a coerção exercida pelos grevistas para que parassem o trabalho – constituem-se em uma construção identitária instrumentalizada no sentido de enfraquecer a posição do movimento paredista em uma luta simbólica pela representação do real.
Analisando a greve de 1906, em Porto Alegre, Joan Bak problematiza o uso das imagens de gênero pela imprensa durante este movimento paredista. Segundo a autora (2003, v. 2, p. 216), os periódicos criavam uma identificação das atitudes das operárias grevistas com posturas consideradas “pouco femininas” – como a participação nas greves e passeatas. Por oposição, idealizavam as mulheres que permaneciam em seus postos, onde a “boa mulher era retratada como a boa trabalhadora”. A idealização chegava a ponto de buscar condutas exemplares, como a de uma moça que permanecera trabalhando em uma fábrica têxtil a despeito das ameaças e intimidações dos grevistas e terminara o relacionamento com seu namorado por este não aceder a seus pedidos de retornar ao trabalho, desmanchando seus planos de casamento. Transformada em heroína cívica, esta moça tornou-se útil aos interesses do patronato, que utilizava-se de sua “influência moral e  tradicional sobre os homens para tentar frear o comportamento desordeiro masculino” (BAK, v. 2, 2003, p. 216). Entretanto, estas são imagens selecionadas de gênero, que se contrapunham às das mulheres que aderiam às greves e que enfrentavam o patronato ao lado de seus companheiros. Estas imagens socialmente aprovadas de ordem e dever contrapunham-se à imagem das operárias grevistas e eram publicadas para servir aos interesses dos empresários, das elites e do Estado.
Assim, dessa relação potencialmente conflituosa emergem ações, instrumentos e estratégias que buscam fazer valer as “ordens” do sindicato e impedir a continuidade do trabalho. Entre essas ações podemos destacar dois tipos de atitude: a “apelidação provocativa” – que, a despeito de não corporificar o ato físico propriamente dito, constitui-se em uma violência na sua faceta simbólica e psicológica –, uma troca de insultos e ofensas que visam desqualificar a imagem dos “carneiros” e coagi-los moralmente a aderir à greve; e as reações de violência física, que surgem ou de modo espontâneo – na esfera do interpessoal, do cotidiano, em que as relações de sociabilidade confundem-se com as escolhas políticas – ou de forma deliberada, baseada em uma razão instrumental com a finalidade de impedir a manutenção do trabalho, uma racionalidade ligada à dominação, à imposição de uma visão de mundo.
Para os grevistas, a figura do “fura-greves” é merecedora de desprezo, repulsa e até ódio, uma vez que, como já foi dito, representa uma ameaça ao sucesso da greve, sendo elaborado um conjunto de visões explicativas sobre o real que esteja adequado a seus interesses sociais ou individuais e que produz uma auto-imagem em contraposição à imagem do outro – também produzida através dessas representações contraditórias e demarcatórias, repletas de insinuações pejorativas. Essas representações contraditórias e antagônicas – sejam elas mediadas por inscrições textuais, imagéticas ou produzidas pelos indivíduos oralmente – acabam por constituir uma “luta de classificações como luta propriamente simbólica (e política) para impor uma visão do mundo social ou, melhor, uma maneira de construí-la, na percepção e na realidade” (BOURDIEU, 1997, p. 26). Através destas representações, os operários grevistas reafirmam sua posição e constroem uma identidade diferente daquela dos que não aderiam às greves (mesmo que pertencendo à mesma classe), reivindicando uma distinção moral sobre aqueles a quem chamavam de traidores, covardes, canalhas e cachaceiros 3.
Neste sentido, a imprensa operária é uma importante fonte de análise da construção da identidade do trabalhador não grevista e dos recursos utilizados para deslegitimar sua posição, utilizando um arsenal de expressões depreciativas que atacavam a dignidade e a honra destes operários e que surgem como uma humilhação pública àqueles que não compartilham da mesma postura. Segundo Ansart (2005, p. 15), humilhação é

 
uma situação particular na qual se opõe, em uma relação desigual, um ator (individual ou coletivo) que exerce uma influência, e, do outro lado, um agente que sofre esta influência. A situação humilhante é, por definição, racional: comporta uma agressão na qual um sujeito (individual ou coletivo) fere, ultraja uma vítima sem que seja possível ma reciprocidade.

E a relação entre grevistas e não grevistas é, por sua natureza, uma relação desigual e assimétrica, uma vez que, de um lado, deparamo-nos com trabalhadores organizados com um apoio institucional e associativo e, de outro, com operários em uma situação de vulnerabilidade, dado o caráter atomístico e individual de sua posição. Assim, mesmo que o grupo grevista não possa impor uma dominação estatutária, não possa fazer valer sua autoridade por meios legais, a pressão do grupo faz com que a reciprocidade da ação seja dificultada em função de uma ameaça física latente: uma reação à humilhação pode resultar em agressões físicas por parte do grupo.
Deste modo, percebe-se que este grupo de trabalhadores que não participava das greves – e que é denominado pejorativamente de “fura-greve” ou “carneiro” – passava a ser alvo de uma série de classificações identitárias na imprensa operária e mesmo na relação quotidiana com os operários grevistas, sendo motivo de escárnio, chacota e desprezo por parte dos últimos. A existência de operários dispostos a trabalhar, mesmo em uma ocasião de parede, da qual eles poderiam se beneficiar, era vista pelos grevistas como uma ameaça ao sucesso do movimento e como uma traição. Pois, “furar uma greve era considerado pela esmagadora maioria dos trabalhadores um ato desonroso, covarde deslealdade que deveria ser punida com escárnio e severidade” 4 (SILVA, 2003, p. 139). Diversas classificações pejorativas são atribuídas nesse momento a esses operários – o constrangimento moral torna-se, além de elemento constituinte da identidade do outro, um recurso utilizado pelos grevistas para coagir esses trabalhadores a aderirem à greve.
Uma das formas de constranger moralmente os operários não grevistas, denegrindo sua imagem, era acusando-os de beber demais. Isso ocorria mesmo nas polêmicas entre socialistas e anarquistas quando, em 1911, por exemplo, para desautorizar a posição de Waldomiro Padilha em favor da adoção da greve como instrumento para conseguir a redução da jornada de trabalho, Francisco Xavier da Costa escreveu um artigo no Correio do Povo afirmando que, mesmo sabendo dos prejuízos do vício do alcoolismo, W. Padilha “não se furtava ao desejo natural de afogar os dissabores da vida num copo de Pelotense ou Pernambucana verdadeira” (ARAVANIS, 2005, p. 186). Aravanis (2005, p. 186) defende que esta condenação ao consumo de álcool deriva da busca pela construção de um corpo operário fisicamente apto aos embates da classe, sendo que o seu consumo acarretaria males físicos e morais que impossibilitavam uma atuação de luta e uma consciência crítica e transformadora do social.
Além da acusação de entregarem-se ao “detestável vício da embriaguez” 5, os não grevistas eram vistos como “espectadores mudos e inconscientes”, “roda inconsciente do mecanismo social que os outros movem” 6 ou mesmo como “mercenários defensores das classes dirigentes”. 7 A culpa pelo fracasso das greves também era atribuída aos fura-greves, pois “a burguesia, garantida pela força, procura carneiros que façam fracassar a greve” 8, uma “falange de covardes que preferem antes sucumbir do que lutar para viver”. 9 Muitas vezes estas pilhérias assumiam um tom mais agressivo e os não grevistas eram vistos como canalhas, desbriados, merecedores de desprezo e ódio gerais 10, formando um “rebanho de Panúrgio imolado sem um balido de cor, sem um gesto de consciência” que seguia resignado e inconsciente. 11 Os jornais operários publicavam notas com o título de Traidores da classe, nas quais faziam uma lista dos “carneiros, tipos desclassificados da mais baixa ralé” 12, o que era, sem dúvida, no mínimo constrangedor para os operários arrolados, uma humilhação pública.
Essas expressões eram, enfim, dirigidas aos não grevistas – alcunhados de “carneiros” – não só pela imprensa operária como também pessoalmente. Muitos conflitos interpessoais acabaram resultando da troca de ofensas entre grevistas e não grevistas como veremos a seguir.
O antagonismo produzido pela tomada de posição nos momentos de greve acabava por gerar situações nas quais as relações entre esses dois grupos chegavam a um limite, a um enfrentamento real que transcendia a esfera produtiva e alcançava o campo da violência, produzida seja de forma instrumental, seja de forma afetiva, irracional. Nestas ocasiões, percebe-se que o entusiasmo e o afã por mobilizar o maior número possível de trabalhadores em prol das causas do movimento operário fizeram com que ocorressem conflitos entre os próprios trabalhadores, entre os militantes operários e os trabalhadores não engajados.
Ocorreram situações nas quais a violência latente é potencializada, gerando conflitos físicos entre os operários grevistas e os trabalhadores que não aderiam às greves. Algumas vezes, esses conflitos assumiam a forma de uma violência instrumental, deliberada, através da qual os grevistas esperavam impedir o trabalho dos demais operários; em outras, a violência apresentava um caráter espontâneo, afetivo, no qual os operários chegavam às “vias de fato” em função de uma antipatia, de uma situação ocasional ou por causa de provocações relacionadas à tomada de posição diante da greve. Em ambos os casos, a violência é rotulada como um ato brutal, um vandalismo irracional realizado por “uma multidão ignorante [...] governada pelos apetites dos que a incitam a extremos de raiva, à espera da oportunidade de cometer qualquer tipo de crueldade” (PARADIN, 1990, p. 130). Contudo, a violência – não importa o quão cruel ela seja – é inspirada e legitimada por crenças e tradições políticas que as precedem e não podem ser compreendidas meramente como explosões insanas e casuais. Esses atos de violência podem ser melhor entendidos se forem levados em conta seus objetivos, os tipos de ação empregados, seus alvos, os elementos que os legitimam e as circunstâncias de seu despertar.
Durante a greve de 1917, em Porto Alegre, alguns operários da Viação Férrea foram processados por lesões corporais após terem entrado em conflito entre si. O motivo foi porque um grevista se indispôs com os trabalhadores que continuavam o serviço.  Segundo o processo que resultou do ocorrido, “desde que rebentou a greve da Viação Férrea que Juvenal Vasques, foguista, vinha fazendo picardias a João Guimarães, contramestre das oficinas da estação do Gravatahy, por não ter este aderido à greve” 13. Encontrando-se Vasques conversando com seu colega Honorato de Souza em um boteco em Gravatahy, onde tomavam um “traguinho” 14, iniciou uma discussão a respeito da greve, chamando a Souza e João Guimarães (que não estava presente na ocasião) de “canalhas e sem-vergonhas”. No desenrolar da discussão, Vasques exigiu que Souza lhe devolvesse uma adaga que teria lhe emprestado. Souza retirou-se para buscar a adaga e, ao voltar, foi recebido por Vasques – que estava bastante embriagado, segundo depoimentos do processo – de revólver em punho. Souza desferiu-lhe um golpe de adaga e, durante a briga, Vasques perdeu sua arma. Ao recuperá-la, saiu atrás de Souza tendo, porém, encontrado a João Guimarães. Ao longo deste processo, observa-se que as questões inerentes à greve permeiam o relacionamento dos funcionários da Viação Férrea.
Juvenal Vasques e Honorato de Souza iniciaram uma briga, pois o último não havia aderido à mobilização, tendo Vasques lhe ferido com uma adaga. O contramestre João Guimarães, que havia sido vítima das picardias de Vasques, interveio em favor de Honorato e feriu Juvenal. Testemunhas afirmaram, no decorrer do processo, que Vasques já havia agredido outro empregado não-grevista, mas declararam também que, na greve anterior, João Guimarães era um dos “cabeças da greve” e que sugerira a um operário, Pedro Kremer, que matasse o chefe das oficinas que não havia tomado parte da mesma. 15  Além disso, Vasques tinha uma “rixa” com João Guimarães, a quem acusava de não ser “solidário com os companheiros”. 16 Este incidente ocorrera não no ambiente de trabalho, mas na saída de um boteco em Gravatahy, onde Vasquez e Honorato tomavam um “traguinho”. 17
Percebe-se claramente que as questões que envolvem a greve acabam transpondo o ambiente no qual elas foram geradas e se arrastam para as outras esferas da vida destes indivíduos. E que a tensão embutida neste antagonismo está bastante presente na vida destes homens: a contenda aconteceu em um momento de lazer, na saída de um boteco. Estes bares – considerados “fortalezas de Satanás” – constituem-se em “espaços autônomos de sociabilidade que, embora conflitivos e plurais, possibilitavam o desenvolvimento de fortes noções de coletividade e a formulação de valores diferenciados dos padrões oficiais” (FORTES, 2006b). É importante salientar que o processo deixa claro que a briga aconteceu em função de pilhérias e humilhações que Vasques fazia com seus colegas por estes não terem aderido à greve. A antipatia entre este e Guimarães se devia ao fato de que o segundo não era “solidário com os companheiros”, ou seja, não havia aderido à greve. Outro fato que pode ser observado é que, segundo um depoente, esta não era a primeira vez que Vasques se envolvia em uma briga com um não grevista, o que pode significar que este tipo de conflito fosse mais comum do que possamos imaginar, pois muitas vezes estas ocorrências não resultavam em processos-crime e nem eram divulgadas pela imprensa.
Contudo, o incidente acima representa um tipo de violência que possui um caráter colateral, espontâneo e circunstancial, não havendo premeditação. É um conflito gerado no âmbito das relações intersubjetivas sem que haja um caráter instrumental efetivo. Há, contudo, casos em que a violência contra os não grevistas assume um caráter instrumental, deliberado, quando os paredistas resolvem impedir que os demais trabalhadores prossigam no serviço utilizando-se de ações de violência física.
Para fins de análise, destacarei dois eventos com essas características: o primeiro ocorrido em 1917, durante uma greve dos calceteiros e, o outro, em 1919, durante a greve geral daquele ano.

a) Greve dos Calceteiros (1917):

Em março de 1917, eclodira na cidade uma greve dos calceteiros 18, tendo como motivo principal “[...] o fato de ter o calceteiro Jerônymo Santos, sido agredido pelo capataz Dorothéo Rivera e seu irmão Félix Rivera; que os grevistas queriam que a companhia do calçamento despedisse o capataz e seu irmão” 19, além de outras reivindicações. A greve seguia o seu curso normal, até que os membros do sindicato da classe se reuniram em uma assembléia e “fortemente trabalhados por correntes perniciosas de anarquismo, [...] resolveram em sessão do predito sindicato que se evitasse por qualquer forma, e até mesmo por meios extremos, que os operários que não haviam prestado sua adesão ao movimento continuassem na labuta diária”. 20 Dirigiu-se, então, à Rua da Conceição, onde trabalhava um grupo de 30 operários do calçamento, e, armados de paus e pedras, envolveram-se em um conflito com os não grevistas, resultando em vários operários feridos e um morto.
Segundo a fonte jurídico-policial, o conflito entre os grevistas e os operários que continuavam a trabalhar aconteceu

 
[...] de conformidade com aquelas temerosas resoluções de se cessar de meios extremos e até do próprio morticínio, contanto que se generalizasse a greve, quando um grupo de grevistas assaltou à mão armada os operários que pacatamente trabalhavam na referida rua Conceição, desfechando numerosos tiros, em conseqüência dos quais foi morto o operário Luíz Silveira da Silva, ferido gravemente Feliciano Salles, e, levemente, Anselmo de Lima e João Manuel Benetti 21..

No depoimento de um operário grevista acusado de ser um dos principais organizadores da agressão, torna-se mais clara a forma pela qual os grevistas decidiram impedir que os “carneiros” trabalhassem. O operário afirma que: “[...] encontrou os calceteiros grevistas reunidos em sessão com o fim de deliberarem o meio de impedir que continuassem a trabalhar os calceteiros que não quiseram aderir à greve”. 22 Na referida sessão, este grevista salienta que foi tomada a resolução de “[...] atacar os trabalhadores do calçamento que não queriam aderir à greve, que embora a polícia pretendesse impedir o assalto, todos do grupo eram obrigados a reagir custasse o que custasse, morresse quem morresse” 23.
Assim, a violência física foi utilizada como um instrumento de ação, uma estratégia para impedir que os operários não grevistas permanecessem em seus postos. Este recurso assume uma aura de legitimidade uma vez que a decisão por estas medidas mais enérgicas se deu através de uma ritualização, uma teatralização, tendo sido discutida em assembléia da classe, deliberada e autorizada pelo sindicato. Uma violência instrumentalizada, com alvos claros, utilizada para um fim específico, claro, racional: impedir a continuidade do trabalho, o que prejudicaria o poder de barganha do sindicato. Quando Bourdieu (1983, p. 195) define os sindicatos como sendo um aparelho de luta e mobilização nos variados campos que formam o mercado de trabalho, parece-me estar querendo enfatizar que é um instrumento de classe, um “utensílio” usado em um campo de disputa no qual cada um dos lados da contenda busca fazer valer seus objetivos, utilizando todos os mecanismos que tem à sua disposição.

b) Greve dos Padeiros (1919):

Situação similar ocorreu durante uma greve organizada pelo Syndicato Padeiral, declarada em maio de 1919, em solidariedade aos canteiros e classes anexas, reivindicando ainda que fossem postos em liberdade os padeiros presos durante a greve anterior e que uma comissão de higiene fiscalizasse as padarias mensalmente. Segundo o periódico O Syndicalista, todas as padarias entraram em greve, exceção feita àquelas cujos proprietários “com elementos estranhos ao sindicato procuravam trabalhar”.
Durante esta greve, ocorreram alguns confrontos entre grevistas e não grevistas, como o do dia 14 daquele mês, quando um grupo de 12 distribuidores armados de revólveres assaltou uma carroça da Padaria Cruzeiro que faria o fornecimento de pão ao Colégio Militar, na Rua José do Patrocínio. Ao ouvir o estampido dos tiros, o agente que guardava o veículo saiu correndo, deixando a carroça com os grevistas que ainda feriram a tiros os cavalos nas pernas. Pode-se considerar este ato como uma estratégia para coagir os demais operários a não trabalharem, um meio de fortalecer sua posição e inibir o funcionamento das padarias. Silva Jr (2002, p. 95-96) salienta que os “padeiros eram famosos por ataques a fura-greves, espancamentos de homens e animais, tiroteios, incêndios de carroça, explosões de fornos, envenenamento de farinha, etc”. O autor ainda destaca que “a violência sindical foi um procedimento racional de resolução dos conflitos de classe”, um instrumento utilizado em defesa dos interesses envolvidos nos conflitos com o Estado e a classe patronal.
Contudo, a situação se torna mais dramática quando um trabalhador que voltava do serviço acaba sendo assassinado por um grevista designado para vigiar os padeiros que continuavam a trabalhar. Foi no dia 16 de maio: o padeiro português Antônio Rodriguez Lopes passava pela esquina das ruas Voluntários da Pátria e Vigário José Ignácio, voltando do serviço, quando foi interpelado por Leopoldo Silva. Da discussão resultou que o grevista disparou duas vezes contra Lopes, que acabou morrendo no ato. O crime deu início a um processo, no qual é indiciado

 
o indivíduo Leopoldo Silva, padeiro, por ter assassinado bárbara e friamente o mísero operário padeiro Antônio Rodriguez Lopes. O denunciado tomara parte ativa da greve dos padeiros, declarada nesta capital e foi esse míster de grevista destacado para vigiar os companheiros que não haviam aderido à parada que ele foi postar-se, às primeiras horas da manhã do dia 16 do corrente [maio de 1919], à esquina das ruas Voluntários da Pátria com a Vigário José Ignácio, nas proximidades da padaria ‘Piccini’. Antônio Rodriguez Lopes, que trabalha nessa padaria, não tendo aderido à greve, ao passar pelo local em que se achava Leopoldo Silva foi por este interpelado sobre a greve. De súbito, sem mais nem menos, Leopoldo Silva arrancou o revólver e detonou-o duas vezes, de surpresa, contra sua infeliz vítima, prostrando-a sem vida”. 24.

Após o ocorrido, Silva fugiu do local, dirigindo-se à Rua da Cadeia Velha, nº 25, onde residiam diversas “mulheres de vida”, tendo se ocultado na bacia da latrina. A polícia foi chamada por iniciativa da dona da casa, Edelmira, e prendeu o acusado. O denunciado confessou durante o processo ter realmente disparado os tiros contra Lopes. Entretanto, justificou o fato afirmando que ao interpelá-lo, a fim de saber se ele continuava trabalhando, Lopes dissera-lhe que não. Colocando em dúvida a resposta de Lopes, observou-lhe que “certamente trabalhava por que nas outras greves ele sempre foi de partido oposto ao dos grevistas” 25. Este se exasperou e, como era maior e mais forte, receoso de uma agressão, disparou sua arma contra o mesmo. O jornal O Independente, porém, dá outra versão ao fato, afirmando que, ao regressar para casa às 8 horas da manhã, após uma noite de serviço, o fornecedor Antônio Rodrigues Lopes foi “alvejado pelas costas pelo padeiro Leopoldo Silva” tendo morte imediata. No decorrer do processo, observa-se que alguns padeiros grevistas tinham se reunido na noite anterior e “declarado que haviam de vingar-se dos padeiros que trabalhavam” 26, ou seja, mesmo que o assassinato não tivesse sido premeditado, os grevistas deliberaram vingar-se dos padeiros que trabalhavam e o réu acabou designado por seus colegas para vigiar os não grevistas. Vigiar com qual intuito? Com arma de fogo na cintura? Provavelmente o réu imaginasse a possibilidade de se envolver em algum conflito. Silva, a despeito de ter recebido auxílio do Syndicato Padeiral, que criou uma Comissão Pró-Presos para providenciar que nada lhe faltasse 27, acabou recebendo uma condenação de 10 anos e seis meses de prisão celular, tendo cumprido pena até o dia 20 de dezembro de 1927.
Durante esta greve, o jornal O Independente salienta que, embora o Governo fornecesse as maiores garantias para a continuidade do trabalho nas padarias, “raras são aquelas que funcionam”, demonstrando que a tática dos grevistas dera resultado. É interessante observar a autoridade e a legitimidade conferidas ao Syndicato Padeiral, uma vez que o administrador da Santa Casa de Misericórdia enviou um ofício ao referido sindicato, solicitando que “fosse permitida a entrega de 110 quilos de pães diários à Santa Casa”. Após reunir-se em sessão, o sindicato tomou uma resolução, divulgada através de um ofício, que comunicava que não atenderia ao pedido, pois sua recompensa seria inevitavelmente “as baionetas e a pata de cavallo 28. O fornecimento de pão aos enfermos da Santa Casa e ao Colégio Militar passou a ser realizado pela Casa de Correção. Para o restante da população, o desabastecimento de um produto tão indispensável levou a uma elevação dos preços dos biscoitos e bolachas no varejo, o que afetou, sobretudo, as pessoas de mais baixa renda que ficavam impossibilitadas de substituir o pão por outro alimento.

À Guisa de Conclusão

Outros casos poderiam ser aqui analisados, mas só mencionarei para aprofundá-los em outro momento. Em uma greve ocorrida em janeiro de 1917, o operário João Fantinel foi agredido por um grupo de grevistas de uma fábrica de meias por recusar-se a participar da greve, resultando em um processo por lesões corporais. Durante a greve geral ocorrida em agosto/setembro de 1919, ocorreram diversos eventos com cenas de violência instrumentalizada pelos grevistas para atingir seus objetivos. O jornal governista A Federação passou a noticiar na segunda semana de greve alguns distúrbios ocorridos: na madrugada do dia 3 de setembro, um cabo que guarnecia a Fábrica Becker e Cia. foi alvejado por um tiro que o acertou de raspão, tendo sido o mesmo levado para o hospital sem que as pessoas que dispararam o tiro tivessem sido encontradas. Além disso, noticiou-se que “[...] a polícia judiciária teve conhecimento de que na sede da Federação Operária se achavam presos alguns operários” e que outros estavam sendo coagidos a aderirem à greve sob pena de sofrerem agressões físicas 29.
É claro que devemos considerar exageros e deturpações por parte de um jornal que tem interesses óbvios em deslegitimar a greve diante da opinião pública. Entretanto, diante de tantas evidências de fontes diferentes é necessário considerar que a violência física era efetivamente um elemento recorrente nas relações entre grevistas e não grevistas no período analisado. A violência dos grevistas pode, inclusive, ser interpretada como uma reação à repressão e à violência policial, uma vez que as greves eram costumeiramente reprimidas, associações operárias fechadas e invadidas e grevistas presos ou obrigados a trabalhar. Mas o fato de esta violência dirigir-se também aos não grevistas – que não eram os responsáveis diretos por esta repressão –, e não somente contra o Estado, a força pública, os patrões e as empresas, é um indicativo de que esta era uma relação tensa e frequentemente conflitiva.

Artigo recebido em 21/10/2008. Aprovado em 22/12/2008.

 

Power and Domination: the relations between strikers and not engagement workers on the southern Brazil (1917-1919).

Abstract:This article has as objective to problematize the relation between the strikers and the workers not engagements, considering that this is a power relation, intermediated for associations and leaderships that exert - or search to exert - a domination on the classroom set. It intends, still, to argue briefly the beddings of the authority syndical legitimacy, bearing in mind that actions of violence were considered half legitimate to the associations objectives.

Keywords:Workers. Strikes. Violence.

 

1 Doutorando em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

2 WEBER, Max. Os três tipos de dominação legítima.

3 Mendes salienta que “o indivíduo forma sua identidade não da reprodução pelo idêntico oriunda da socialização familiar, do grupo de amigos, etc., mas sim do ruído social, dos conflitos entre os diferentes agentes e lugares de socialização”. Ver MENDES, José Manuel Oliveira. O desafio das identidades. In: SANTOS, Boaventura de Souza (Org.). A Globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortez, 2002. p. 504. Portanto, as identidades são construídas a partir do confronto com o diferente, com o outro, estabelecendo distinções e atributos que afastam e/ou aproximam. Deste modo, ao mesmo tempo em que a identidade é auto-atribuída através de um conjunto de símbolos que integram indivíduos, são construídas e atribuídas identidades exteriores aos demais grupos, aos diferentes. Em sua tese de doutorado, Bilhão faz uma análise do processo de construção identitária dos operários porto-alegrenses entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, a partir das relações de reconhecimento, distinção e pela reivindicação de uma memória comum entre os operários. Cf. BILHÃO, Isabel. Identidade e trabalho: análise da construção identitária dos operários porto-alegrenses (1896-1920). 2005. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, UFRGS, Porto Alegre, 2005.

4 Estudando os trabalhadores em Santos, Silva (2003) analisa dois casos exemplares: em um deles até mesmo as mulheres dos trabalhadores que se recusaram a se manter em greve os trataram como subservientes animais; e em outro algumas crianças apedrejaram motorneiros de bonde que não haviam aderido à parede.

5 AO POVO. U.G.T. 1919. Anexo 34 do Processo-Crime 1016. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maço 66. Estante 29. Júri-Sumários.

6 O Syndicalista. Porto Alegre: 1º/04/1919, Ano I, n. 1, p. 1.

7 Moção da FORGS. 1919. Anexo 22 do Processo-Crime 1016. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Maço 66. Estante 29. Júri-Sumários.

8 Sindicato dos Operários da Força e Luz. Anexo 12 do Processo 1016.

9 Aos Operários e Ajudantes. Anexo 16 do Processo 1016.

10 Cf. QUEIRÓS, 2006. No segundo capítulo deste livro, faço uma análise de uma canção intitulada “Canção dos Fura-Greves” e publicada no jornal O Syndicalista, quando estes atributos são bastante enfatizados.

11 A expressão “Rebanho de Panúrgio” foi utilizada em um artigo de Hélgio Fulgente, publicado no periódico O Syndicalista, referindo-se aos operários que não aderiam à greve. Panúrgio é um personagem do livro Pantagruel, de Rabelais. Este personagem possuía um inimigo chamado Dindenant, que criava carneiros. Certo dia, Pantagruel comprou um de seus carneiros e lançou-o ao mar. O restante do rebanho o seguiu, levando junto Dindenant que se agarrara ao último dos carneiros. O Syndicalista. Porto Alegre: 1º/04/1919, Ano I, n. 1, p. 1.

12 O Syndicalista. Porto Alegre, n. 7. Setembro de 1919.

13 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 72.

14 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 21.

15 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 75.

16 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 77.

17 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n.º 833. Porto Alegre: 1917, p. 21.

18 Sobre a greve dos calceteiros, cf. SILVA Jr, 1994.

19 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 856. Porto Alegre: 1917, p. 16.

20 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 856. Porto Alegre: 1917. Há uma análise desta greve em SILVA Jr., 1995. p. 77. O autor afirma que “a tendência da historiografia [...] [é] exagerar a presença do anarquismo no movimento operário na República Velha [...]” e caracteriza o sindicato envolvido na greve pela relação do “anarquismo das lideranças com as práticas da categoria”.

21 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 856. Porto Alegre: 1917. Juri-Sumários, p. 10.

22 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 856. Porto Alegre: 1917. Juri-Sumários, p. 10.

23 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 856. Porto Alegre: 1917. Juri-Sumários, p. 12.

24 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 1029. Porto Alegre: 1919, p. 92.

25 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 1029. Porto Alegre: 1919, p. 9.

26 Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul. Processo-Crime n. 1029. Porto Alegre: 1919, p. 93.

27 O Syndicalista. Porto Alegre, n. 5. Julho de 1919.

28 O Independente. 14 e 16/05/1919.

29 A Federação. Porto Alegre, 03/09/1919, p. 5.

 

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