Porto Alegre e seus patrimônios no século XX:

evolução de conceitos, valores e feições na materialidade urbana


Jeniffer Cuty


1 Remetendo a uma evolução de tempos e espaços da cidade: as ruas e as avenidas
2 Permanências físicas e conceituais nas ações de preservação em porto alegre
3 O centro histórico e o programa monumenta em porto alegre
4 Espaços públicos: as praças da alfândega e da matriz
5 Olhando o futuro e percorrendo o passado através da materialidade urbana
Notas
Referências

RESUMO
Discute algumas questões referentes à transformação de Porto Alegre no século XX, refletindo posturas diante de suas arquiteturas e seus traçados urbanos, bem como de seus planos e programas de preservação e valorização do patrimônio cultural.
PALAVRAS-CHAVE: Modernização. Patrimônio Cultural. Evolução urbanística - Porto Alegre.


No século XX a prenda faceira embarcou com firmeza no trem da história, então parado numa terceira estação cultural: se casou com o progresso, o herói do momento, se vestiu de madame, dançou tango e gerou herdeiros modernos que ouviam jazz e bossa nova. Seus filhos construíram o novo destruindo o velho, ergueram muros cinzentos diante de janelas luminosas, traçaram pontes e aposentaram barcos, aterraram a água e aguaram a terra. Tanto causo, tanta coisa, que a memória apaga e que a história salva, ou inventa!

Andréa Soler Machado


A modernização das cidades ao longo do século XX acarretou, por um lado, novas conexões econômicas e sociais na região de influência de grandes centros urbanos e, por outro, o abandono de áreas centrais, portuárias e industriais, sobretudo a partir das últimas cinco décadas. Paralelamente a essas alterações – desmedidas no âmbito da vitalidade de lugares tradicionais inseridos na cidade – ou mesmo ponderadas pela ação política, mas descompassadas com a realidade social, fez-se necessário repensar a construção e a renovação das cidades a partir da chamada preservação cultural dos patrimônios: material e imaterial.

Entende-se que algumas ações de preservação cultural, em suas bases conceituais e operacionais, integram-se aos paradigmas de desenvolvimento sustentável das cidades, incluindo-se, portanto, no rol das estratégias primordiais de planejamento urbano. Elas firmam-se, inicialmente, como ações de mobilização coletiva ou de educação patrimonial, no sentido de promoverem sensibilizações sobre a história, a memória e a identidade local, regional e nacional, para, em seguida, concretizarem-se no espaço físico.

Atuar na renovação da imagem urbana, considerando a preservação de valores expressos nas arquiteturas e nos traçados de uma cidade é uma tarefa que envolve o conhecimento da origem e do processo de transformação físico e social deste espaço. É necessário, portanto, recorrer à história narrada em texto, em imagem e mesmo à memória contada por aqueles que vivenciaram a cidade ao longo das décadas, para apropriar-se do ambiente coletivo que se apresenta.

É fundamental permitir-se percorrer o espaço irregular da cidade, no caso em questão da capital gaúcha, que se formou e segue se transformando, identificando diálogos harmônicos ou desarmônicos entre monumentos neoclássicos, arquiteturas ecléticas e protomodernistas e as chamadas reminiscências de um período colonial, com casas baixas, de porta e janela e platibanda simples, construídas em lotes estreitos, as quais configuram o grão pequeno na leitura macro da cidade. Nesse percurso é possível ainda fazer menção a referenciais oriundos do urbanismo francês – especialmente na configuração de parques em Porto Alegre – e do urbanismo modernista, como na área dos aterros, onde se situam a Câmara Municipal de Vereadores e o Centro Administrativo do Estado.

Antes do trânsito pelas macro-leituras da cidade, é importante saber interpretar as relações atuais que se dão no espaço de origem – o lugar de fundação – pois ele carrega a mais expressiva imagem externa desta cidade, ou seja, aquela que é percebida e “comprada” pelos que vêm de fora. No caso de Porto Alegre, identificar, primeiramente, a imagem do Centro banhado pelo lago Rio Guaíba, especialmente na interface entre Pórtico Central do Cais, eixo da Avenida Sepúlveda e Praça Senador Florêncio – conhecida como praça da Alfândega (Figura 1) – pode ser um passo certeiro na tradução de tempos que se superpõem e modos que assinalam nossa urbanidade.


Figura 1 - Praça da Alfândega: local do comércio na cidade. Ao fundo, o antigo prédio dos Correios e Telégrafos e da Delegacia Fiscal. Foto de Olavo Dutra. Fonte: Acervo do IPHAN.



1 Remetendo a uma evolução de tempos e espaços da cidade: as ruas e as avenidas

Certamente a capital gaúcha embarcou na estação do progresso a todo custo, marcado pelo período da chamada industrialização, entre 1890 a 1945[1] . Essa fase registra a mudança de fisionomia de Porto Alegre, especialmente com a elaboração e a execução de planos urbanísticos envolvendo grandes obras de embelezamento – no sentido da importação de conceitos em vigor na Europa do século XIX – e de arruamentos, objetivando a abertura de avenidas que interligassem o Centro – onde tudo acontecia – com o resto do território ainda pouco habitado.

As obras desse período, entre elas a inauguração do Cais do Porto, em 1922, e a abertura das avenidas: Borges de Medeiros, entre 1924 e 1928, e Farrapos, em 1940, foram o reflexo mais significativo da necessidade da capital comunicar-se de maneira rápida e eficaz com sua região de abrangência. O Cais do Porto, as ruas, as avenidas e as estradas, como a própria BR 116, representaram a modernização dos eixos e dos acessos da cidade. Suas feições se deram pela imagem da grande caixa de rua – com calçamento e canteiro central – e pelas arquiteturas, entre elas: ecléticas, que se disseminaram na Porto Alegre do início do século XX, art déco e protomodernistas (especialmente na avenida Farrapos e seu entorno) e modernistas, sobretudo no prolongamento da avenida Borges de Medeiros.

No interior do núcleo original do antigo Porto São Francisco dos Casais, o atual Centro Histórico de Porto Alegre, a área de comércio se estabeleceu na sua parte baixa, nas imediações do Mercado Público, construído entre 1861 e 1869 com linhas sóbrias e retas e com ornamentos que caracterizavam a chamada arquitetura neoclássica. A rua que literalmente beirava a praia durante os primeiros anos de ocupação da cidade, atual Rua dos Andradas, foi se distanciando da borda com o Guaíba em função dos aterros realizados desde o final do século XIX e foi sendo ocupada, ainda na primeira metade do século XX, pelo comércio elegante e pelos casarões de famílias abastadas, na sua parte alta.

A Rua da Praia passou a abrigar ainda edificações residenciais de médio porte (nas imediações com a Usina do Gasômetro), equipamentos culturais – como a Casa de Cultura Mario Quintana (reciclada no final da década de 1980) – e altos prédios como o Edifício Santa Cruz. Este canal de ligação entre espaços e tempos – de importância singular para a cidade – consolidou-se como a rua do fetiche de mercadorias e de passagem de pessoas, fazendo referência aos conceitos benjaminianos[2] desenvolvidos para a Paris do século XIX.

Entre as grandes transformações ocorridas na configuração da cidade, ao longo do século passado, constatamos a multiplicação de centralidades, entendendo-se esse fenômeno como um reflexo do crescimento de usos, funções e das características temáticas das inúmeras áreas inseridas no perímetro urbano. Os novos centros, internos à cidade, possibilitaram o aparecimento de novas vocações em áreas ou avenidas, tais como: empresariais, a exemplo da avenida Carlos Gomes; comerciais, como as avenidas Azenha e a Assis Brasil; residenciais, com os novos condomínios, entre eles Terra Ville e Jardim Europa, as quais foram e estão sendo modeladas por arquiteturas de diferentes épocas. Cabe pensar que essas “novas” arquiteturas edificadas fora do Centro Histórico encontraram, em alguns casos, exemplares de arquitetura colonial, eclética ou mesmo neoclássica nas suas imediações, as quais resistiram ou não às renovações.


2 Permanências físicas e conceituais nas ações de preservação em Porto Alegre

A investigação do patrimônio cultural urbano e arquitetônico, a partir da análise das permanências na cidade, ou seja, através de uma materialidade construída em forma de um mosaico de tempos, técnicas, tecnologias e valores éticos e estéticos, assim como da sua relação com seus consumidores, encaminha-nos para a compreensão refinada das estratégias de preservação e valorização da cultura deste locus específico. Parte-se, portanto, do pressuposto de que os programas e as ações têm como base tradicionais paradigmas de preservação, assim como novos conceitos aprimorados no final do século XX, alguns deles expressos claramente nos planos diretores e em outras legislações urbanas.

Em Porto Alegre, os primeiros movimentos organizados na defesa da preservação são registrados no início da década de 1970. Antes disso, todas as ações nesse sentido buscavam apoio do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, desde os anos 1930. O município de Porto Alegre, sempre pioneiro no país em iniciativas desse tipo e também precursor na elaboração de planos urbanísticos, promulgou, em 1970, a nova Lei Orgânica Municipal, na qual estava explicitada, pela primeira vez, a preocupação com o patrimônio cultural da cidade.

A partir da Lei Orgânica foi criada uma comissão que formulou uma primeira listagem de 59 bens a serem preservados. Considerando critérios de ordem histórica, artística e cultural, a lista indicava prédios, conjuntos e elementos arquitetônicos, de propriedade pública ou privada e de usos residenciais, comerciais e institucionais. Para a arquiteta Elena Graeff: “[...] esta foi, portanto, a primeira versão de um inventário de bens significativos para a história da identidade da cidade” (GRAEFF , 2001, p.40), na qual se encontra, nitidamente, a predominância de exemplares de valor histórico ou daqueles que representam características relacionadas à arquitetura de origem portuguesa ou dita açoriana. No âmbito das ações físicas, verificam-se, a partir deste período, intervenções através do uso do fachadismo, ou seja, com a intenção de preservar apenas as fachadas ou algum elemento isolado da edificação, prática que persiste até hoje.

Ainda nos anos 1970 foi promulgado o Primeiro Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – o 1° PDDU – no qual está reconhecida a importância da preservação do patrimônio através de dispositivos de proteção e incentivo. O grupo responsável pela elaboração das diretrizes do item Subárea de Paisagem Urbana apresenta uma nova listagem que arrolava aproximadamente 2 mil imóveis, localizados em diversos bairros da cidade, confirmando a consciência dos planejadores em relação à amplitude geográfica das ações preservacionistas. Nesta listagem estão classificados dois tipos de imóveis: os de interesse sociocultural, que deveriam ser preservados, e os de adequação volumétrica, que poderiam ser substituídos.

Essa trajetória da preservação reconhecida em lei influenciou a Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural (EPAHC) da Secretaria Municipal da Cultura a dar início, em 1989, ao trabalho de inventariar a área central de Porto Alegre. O projeto tomou proporções que envolveram outros órgãos, assim como ampliou sua cobertura em bairros próximos ao Centro. Grande parte dos imóveis da listagem de 1977 já havia sido descaracterizada ou demolida.

A partir desse projeto passaram a ser valorizados exemplares significativos da arquitetura dos anos quarenta, cinqüenta e sessenta, característicos do período deco e do modernismo. Como conseqüência da nova postura frente à preservação nas áreas urbanas, a EPAHC reformulou os fundamentos para a valorização dos bens. Atualmente, os critérios adotados dividem-se em quatro instâncias de abordagem: a instância cultural, que considera os valores históricos e/ou referenciais do bem para a população; a instância morfológica, que considera os valores sob a ótica da história da arquitetura; a instância técnica, a qual analisa os valores construtivos e, por fim, a instância paisagística, que aborda a relação do bem como o entorno.

Em Porto Alegre, o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano e Ambiental -PDDUA, de 1999, introduziu uma alteração conceitual em relação aos bens, através da delimitação de Áreas Especiais de Interesse Cultural, recebendo regimes urbanísticos específicos com vistas à potencialização e à preservação de qualidades ambientais diferenciadas. Esta evolução no trato dos bens culturais nos leva a pensar numa consciência acerca do espaço urbano, ou seja, da compreensão por parte de legisladores e planejadores sobre a cidade como bem patrimonial e, especialmente, sobre uma postura flexível diante de sua permanente transformação.

Em 1993 iniciou-se, em Porto Alegre, um novo processo de planejamento participativo, o qual culminou com a realização, em 1996, do Congresso Cidade Constituinte. Neste momento, foram discutidas e aprovadas diretrizes que contemplaram aspectos como a implantação de um Programa de Corredores Culturais para a Cidade visando, prioritariamente, à qualificação das áreas comerciais do Centro através do patrimônio arquitetônico, instalação de equipamento de mobiliário urbano, disciplinamento da publicidade e do uso do espaço público (do comércio informal), a ser proposto em conjunto pelas instituições e associações ligadas à preservação, comércio, indústria e moradores da área central da cidade.

Observa-se que essas diretrizes – assumidas pela Secretaria Municipal da Cultura, na forma de Programa do Corredor Cultural – trouxeram à área central de Porto Alegre, especialmente à Rua da Praia, a possibilidade de discussão sobre o que está sendo descaracterizado pelo abandono ou pela falta de informação e de que forma vêm ocorrendo essas modificações. Mais do que a preocupação com aspectos arquitetônicos buscou-se possibilitar a reflexão sobre identidade cultural e urbana dos antigos e novos moradores/usuários do Centro.

O entendimento das especificidades evolutivas e históricas dessa área e a compreensão de tudo que ela delimita e sugere foram fundamentais para estruturar ações de reversão do processo de abandono. O arquiteto Luiz Merino Xavier tece considerações sobre a degradação ocorrida nas áreas centrais das principais cidades brasileiras, afirmando que esse processo “[...] é fruto de uma intensa valorização imobiliária ocorrida nos primeiros decênios do século XX” (XAVIER , 2003, p.57).

A estrutura urbana brasileira do século XX havia herdado do século anterior (XIX) um modelo morfológico colonial baseado na residência unifamiliar. Esse modelo permaneceu inalterado até as primeiras décadas do referido século. Foi apenas com o processo de industrialização que algumas capitais brasileiras passaram a ter as tipologias mistas (unifamiliares e comerciais), em suas áreas centrais, paulatinamente substituídas por tipologias multifamiliares. Xavier observa ainda que:


Quando a valorização do solo atingiu um ponto em que o prédio passou a valer menos que o terreno, a demolição ocorreu. Este processo foi bastante rápido: em trinta anos, boa parte do estoque de prédios do século XIX foi substituído por um novo tecido urbano, denso e verticalizado. (XAVIER, 2003, p.57)

A verticalização – que pode ser entendida como uma influência modernista ou como a importação da imagem de cidades “capitalistas” e de um modelo experimentado nos Estados Unidos – representou, além do impacto morfológico (do “arranha-céu”), uma nova forma de morar e de trabalhar, permitindo, inicialmente, uma intensa revalorização econômica e simbólica das áreas centrais das cidades brasileiras. Entretanto, sua aplicação abusiva, sem controle de qualidade do espaço e do conforto da população, sem relação adequada com a caixa das ruas e sem previsão de vagas de estacionamento, trouxe, muito rapidamente, suas conseqüências negativas, degradando a área central já a partir da década de 1960.

A alta densidade ali instalada e os problemas decorrentes, como trânsito caótico e falta de segurança, afastaram a população residencial daquela área. Ao Centro coube, a partir daí, a função especializada de um ponto de negócios, serviços e compras, com um fluxo elevado de pessoas durante o dia e restrito à noite. Esse esvaziamento fora dos horários comerciais sofreu uma inversão a partir das sucessivas crises da década de 1980, quando as antigas edificações passaram a ser ocupadas pelos setores populares, em busca de uma excelente acessibilidade, de aluguéis baratos e da grande movimentação.

Xavier entende que a elite cultural – aquela que consumiu ativamente o Centro na primeira metade do século - relacionou-se de forma dúbia com essas transformações, revelando um sentimento de perda do espaço de sua memória. Suas referências ainda estão nos antigos cafés, nas livrarias e confeitarias sempre citadas, mas muitas delas inexistentes. A Rua da Praia abrigou muitos desses lugares e, ainda hoje, é a grande interface urbana e social do Centro de Porto Alegre. Historicamente, ela comportou-se como vitrine de quem passa, quer ver e ser visto. Atualmente, ela é entendida nas suas muitas faces. Sua fragmentação caracterizada pela mistura de atividades comerciais e culturais, bem como residenciais, suscita a sua compreensão em diversos níveis, os quais acusam um manejo sensível desse processo.

A partir desse quadro de análise foram formuladas as diretrizes do Programa Corredor Cultural de Porto Alegre, tomando como ponto de partida a via mais simbólica da cidade: a Rua da Praia. Qualquer ação nesta rua, certamente, acarretaria um reflexo imediato em todo o Centro. Ao contrário do que ocorreu na cidade do Rio de Janeiro, o Corredor Cultural em Porto Alegre não foi regulamentado por lei, mas respaldado nas diretrizes do Congresso da Cidade. Ele se valeu não de ações fiscais ou legais, mas de estratégias que interferiram na profundidade da relação afetiva da população da cidade, da região, do Estado e dos turistas com o Centro. O projeto visou assim promover a convivência de épocas, de culturas, de etnias, de segmentos sociais. Com vistas a novas ações no Centro, o Corredor Cultural cumpriu seu papel de programa piloto, tendo em vista que, no final da década de 1990, a cidade iniciou um novo processo.


3 O Centro Histórico e o Programa Monumenta em Porto Alegre

O Centro Histórico de Porto Alegre (Figura 2) – delimitado pelas avenidas Loureiro da Silva e Borges de Medeiros e também pelo Cais - caracteriza-se por apresentar uma enorme diversidade em sua fisionomia, fruto da convivência entre estilos arquitetônicos distintos, pela forte presença da interface com o Rio Guaíba e por abrigar lugares evocativos da história do Rio Grande do Sul. A exemplo de outros centros históricos no país, Porto Alegre apresenta a “cidade alta”, com foco na Praça da Matriz – o centro cívico gaúcho - em torno do qual situam-se os palácios representativos dos três poderes: executivo (Palácio Piratini), legislativo (Palácio Farroupilha) e religioso (Catedral Metropolitana).


Figura 2 - Mapa do Centro Histórico de Porto Alegre, com o eixo da Rua da Praia e as duas praças – da Alfândega e da Matriz - destacadas. O norte está indicado para cima. Edição da autora.


Na parcela baixa, encontra-se a Praça da Alfândega, na qual predomina o caráter misto das atividades. Sua configuração urbana, somada à presença de edificações construídas entre o final do século XIX e início do século XX, dão um caráter especial àquela área.

Essas características arquitetônicas, urbanas e históricas destacaram a importância da cidade no contexto nacional e levaram ao tombamento do Sítio Histórico de Porto Alegre, pelo IPHAN, em 2000. Esse tombamento foi o marco inicial para a posterior instalação do Programa Monumenta na cidade.

O Projeto Monumenta Porto Alegre – o qual integra um amplo programa de valorização e conservação do patrimônio das cidades brasileiras – propôs, inicialmente, como uma de suas atividades o Plano de Interpretação do Centro Histórico. Este plano definiu-se enquanto um conjunto de ações que tinham como objetivo democratizar o acesso às informações históricas sobre a cidade, contribuindo para a apropriação do patrimônio por parte dos visitantes e moradores, além de proporcionar uma reflexão sobre as mudanças operadas no transcorrer do tempo. Entende-se, desta forma, que o patrimônio legitimado pelos recursos legais é apenas um dos componentes da memória, da cultura e de uma coletividade, sendo necessário, portanto, remexer a história e dar luz a quem quiser ver seus processos evolutivos.

Um plano de interpretação prevê o levantamento de todos os centros culturais e espaços a serem potencializados no sentido acima exposto, bem como a realização de projetos de educação patrimonial e de capacitação de pessoal para agir e interagir com os patrimônios materiais e imateriais. Entretanto, é importante conhecer as estratégias do Monumenta de atuação no espaço físico, compreendidas na sua complexidade, a começar pela chamada área de influência, que corresponde à totalidade do Centro Histórico de Porto Alegre, através da qual são dimensionadas as abrangências do projeto

A Área Elegível do Programa (Figura 3), segundo consulta ao Perfil do Projeto, inclui o “Sítio Histórico das Praças da Matriz e da Alfândega” (tombado pelo IPHAN, em 2000), o entorno do Sítio Histórico e o entorno de um conjunto de imóveis de interesse de preservação. Discriminam-se, então, três poligonais de trabalho: (1) a do Sítio Histórico propriamente dito (2) a do Entorno do Sítio Histórico, incluindo aproximadamente 270 imóveis; (3) A Área do Projeto com aproximadamente 280 imóveis e um total de cerca 5 mil e quinhentas economias residenciais e não-residenciais. Esta área se encontra totalmente inserida no Centro Histórico e pode ser lida como um recorte legítimo do espaço que abriga a diversidade e a história de Porto Alegre.


Figura 3 – Área do Projeto Monumenta Porto Alegre e Sítio Histórico urbano tombado em nível federal.
Fonte: Programa Monumenta.


Até a data de tombamento do Sítio Histórico, a União possuía, no Centro de Porto Alegre, quatro imóveis tombados: o Pórtico Central e Armazéns A e B do Porto, o prédio dos Correios e Telégrafos (atual Memorial do Rio Grande do Sul), o Solar dos Câmara e a Igreja Nossa Senhora das Dores. Com o tombamento do Sítio, acrescentaram-se, ao acervo, as praças da Alfândega (inclusive os jacarandás, como proteção ambiental) e da Matriz e os prédios do Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS), a Biblioteca Pública do Estado, o Theatro São Pedro e o Palácio Piratini. O Entorno do Sítio Histórico e do Conjunto de Imóveis de Interesse de Preservação compõe-se de oito imóveis relevantes no Centro (tombados estaduais e municipais), incluindo, ainda, o primeiro bem tombado federal de Porto Alegre, a Igreja Nossa Senhora das Dores.

O Projeto Monumenta Porto Alegre, que permanece atuando até os dias de hoje, é composto por órgãos governamentais das três instâncias, sendo eles: a Prefeitura Municipal de Porto Alegre – que gerencia os trabalhos através de sua equipe executora, sediada nos altos do Mercado Público; o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado (IPHAE) – que acompanha a execução dos projetos nas edificações e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) – que participa de decisões conjuntas.

Constata-se a preocupação com a caracterização e o diagnóstico dos aspectos urbanísticos, socioeconômicos e ambientais do local trabalhado, sendo fundamental a busca de dados históricos para este estudo. Pressupõe-se a participação ativa do setor privado, bem como da comunidade nesse processo.


4 Espaços públicos: as praças da Alfândega e da Matriz

As intervenções previstas para os espaços públicos são a grande expectativa da contribuição do Monumenta na cidade. Os espaços aqui abordados são definidos pelas Praças da Matriz e da Alfândega, bem como seus entornos imediatos, compreendendo também a avenida Sepúlveda – importante eixo visual ao Cais do Porto.

As duas praças sofreram poucas modificações a partir das primeiras décadas do século XX, ao contrário de seu entorno e da cidade como um todo. A mudança mais profunda na Praça da Alfândega se deu com a ampliação de seu espaço a partir da integração da Praça Rio Branco, limite aos prédios dos Correios e Telégrafos (atual Memorial) e da Delegacia Fiscal (MARGS). O projeto que visava integrar à praça o terreno resultante da demolição da antiga Caixa Federal não se efetivou e, no espaço resultante, foi construída uma nova edificação em estrutura moderna.

Na Praça da Matriz (Figura 4), a sua configuração original foi modificada com a substituição de duas edificações e com o surgimento de uma terceira. A primeira foi a demolição da antiga Igreja Matriz, edificada no século XVIII, e a construção, no seu lugar, da atual Catedral Metropolitana na década de 1930. A segunda foi a destruição através de um incêndio, em 1949, do prédio do Tribunal do Júri, construção idêntica ao Theatro São Pedro, e sua substituição, na década seguinte, por um edifício moderno. Por fim, a terceira, foi a transferência de um importante espaço de sociabilidade, ao ar livre, do início do século XX: o Auditório Araújo Viana, pelo atual edifício da Assembléia Legislativa.


Figura 4 - A antiga Praça da Matriz com os prédios gêmeos (Theatro São Pedro e Tribunal do Júri).
Fonte: EPAHC/SMC.


Em relação aos aspectos urbanísticos, fica clara a preocupação do Programa Monumenta em identificar fluxos de pessoas e veículos, bem como resgatar eixos visuais que comuniquem os espaços satisfatoriamente. De acordo com o projeto para a restauração da Praça da Alfândega, a intervenção foi prevista em dois planos: o material e o humano. No plano material, a medida lançada em projeto é a recuperação da praça, restaurando pisos e monumentos, redesenhando canteiros e caminhos, trazendo ao presente a sua fisionomia histórica.

A intervenção na Praça da Alfândega é tema de diálogo permanente entre as instituições envolvidas e o público que freqüenta o local. Segundo Luiz Merino Xavier, o maior desafio na implantação do projeto diz respeito aos “trabalhadores da praça”, ou seja, o chamado material humano. Artesãos e engraxates estão contemplados pelo Monumenta, sendo que os primeiros já participam de um processo de recadastramento e requalificação para que o artesanato produzido mantenha-se característico de Porto Alegre.

Para os engraxates está prevista sua relocalização nas proximidades da sede da Caixa Econômica Federal, não sendo descartada a proposta do próprio grupo de que alguns deles sejam transferidos para outros locais do Centro, como a rodoviária e a avenida Borges de Medeiros. Estas medidas encerram uma alteração significativa na imagem daquele espaço e nas suas relações de apropriação e uso.

Nas intervenções pontuais sobre os monumentos, o Programa vem realizando restaurações de importantes exemplares arquitetônicos, entre os quais destacam-se: a Igreja das Dores, a Biblioteca Pública do Estado - espaço nobre que guarda marcas da doutrina positivista amplamente difundida no Estado no início do século XX – e o casarão destinado a abrigar a Pinacoteca Ruben Berta, com o lançamento da obra anunciado recentemente. Estas ações sobre a materialidade arquitetônica retomam conceitos e valores que vêm se renovando desde o início do século passado.


5 Olhando o futuro e percorrendo o passado através da materialidade urbana

Apreender a cidade envolve percorrê-la, olhá-la, observá-la e ser por ela observado. Esta experiência nos permite reconhecer a chamada imagem interna que cada um de nós carrega de sua própria cidade e, dependendo da capacidade de afastamento individual, possibilita vivenciar a imagem externa, ou seja, aquela como a cidade é percebida e narrada ao longo do tempo. Cada consumidor do espaço urbano elenca um rol de lugares nos seus armários da memória e os projeta em situações futuras. Nesta mescla de colecionadores de “cidades internas” encontram-se os legisladores, planejadores e preservacionistas a fim de executar a difícil tarefa de ler tempos e filtrar espaços a serem preservados.

Conceitos de intervenção pontual e de preservação do patrimônio tangível e intangível superpõem-se na tessitura de um planejamento de cidade legível e sustentável. Sobre legibilidade podemos nos referir a algumas cidades no mundo, como a Veneza inundada e interligada por pontes e a Paris que se transformou no século XIX, a partir das aberturas de grandes avenidas – os bulevares – e de um modelo global de intervenção denominado “haussmannização”. Ainda nesta linha, pensamos num projeto de renovação urbana sofrida pelo Rio de Janeiro, no século XIX, que marcou expressivamente a influência européia no Brasil.

No caso da capital gaúcha, os diagnósticos históricos que precederam os programas de preservação do patrimônio edificado e urbano, aqui descritos, revelam claras influências estrangeiras nos traçados de parques ou mesmo em algumas arquiteturas monumentais, registrando o período das imigrações alemã e italiana. Por outro lado, a leitura desses planos e dessas ações nos mostra um refinamento na compreensão das origens da cidade, pois partem de uma visão plural do espaço, da história e da complexidade de relações. A preservação do patrimônio adquire, portanto, um sentido de modernização do corpus edificado e urbano remanescente destinado ao usufruto pleno das gerações futuras.

A desejada cidade da estratificação temporal denuncia ações acertadas ou equivocadas no seu corpo. Além disso, ela – a cidade que aí está – aponta sem maiores reservas uma modernidade reduzida a uma lista de paradigmas e um bloqueio a novas possibilidades. Ela acusa assim, na sua feição urbana, caminhos para preservação de seus valores culturais, conduzindo olhares e mãos vindos de instituições governamentais na direção das decisões a serem tomadas. A inclusão planejada de agentes populares neste processo garante exitosos projetos a serem descritos, revistos e interpretados no futuro.


Porto Alegre and its patrimony in the 20th century: evolution of concepts, values and traits in urban materiality
ABSTRACT
It discusses some questions about the transformation of Porto Alegre in the 20th century, reflecting about its architecture and urban design, as well as concerning programs of preservation and valorization of the cultural patrimony.
KEYWORDS: Modernization. Cultural Patrimony. Porto Alegre Urbanistic evolution.


Porto Alegre y su patrimonio en el siglo XX: evolución de conceptos, valores y facciones en la materialidad urbana
RESUMEN
Discute algunas cuestiones acerca de la transformación de Porto Alegre en el siglo XX, planteándose posturas frente a sus arquitecturas y trazados urbanos, así como en relación a sus planes y programas de preservación y valorización del patrimonio cultural.
PALABRAS CLAVE: Modernización. Patrimonio Cultural. Evolución urbanística – Porto Alegre.




Notas

[1] Fase da industrialização da capital gaúcha, segundo divisão sugerida pelas arquitetas Celia Ferraz de Souza e Dóris Maria Muller (2007). Para as autoras, após 1945 a cidade passa por uma metropolização, a qual representou além de um período de expansão das funções (ligadas à indústria e ao setor terciário) para sua região metropolitana, uma densificação da área central. As fases, consideradas pelas autoras, serviram de base didática para a análise neste artigo.

[2]Ver a obra das Passagens de Walter Benjamin, publicada pela Editora da UFMG em 2006.


Referências

BELLO, Helton Estivalet. O Ecletismo e a imagem de Porto Alegre. 1997. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1997.

BRASIL. Ministério da Cultura. Programa Monumenta. Brasília, 2006.

[<] GRAEFF, Elena . In POSSAMAI, Zita (Org.). A memória cultural numa cidade democrática. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2001.

MARTINI, Maria Luiza. Corredor Cultural – Rua da Praia. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 1997.

MEIRA, Ana Lúcia. O Passado no futuro da cidade: políticas públicas e participação dos cidadãos na preservação do patrimônio cultural de Porto Alegre. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2004.

PESAVENTO, Sandra. Memória Porto Alegre: espaços e vivências. Porto Alegre: Editora da UFRGS, Prefeitura Municipal de Porto Alegre, 1991.

POSSAMAI, Zita (Org.). A Memória cultural numa cidade democrática. Porto Alegre: Unidade Editorial da Secretaria Municipal da Cultura, 2001.

SOUZA, Celia Ferraz de ; MULLER, Doris Maria. Porto Alegre e sua evolução urbana. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007.

[<] XAVIER, Luiz Merino. Estabilidade do tecido urbano e formas de propriedade do solo: interferências no processo de crescimento e de segregação – o caso de Porto Alegre. 2003. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Arquitetura, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2003.


Jeniffer Cuty
Arquiteta e urbanista formada pela UFRGS. Doutoranda em Planejamento Urbano e Regional /UFRGS Professora de Patrimônio Cultural em Porto Alegre e no curso de Restauro da UNESCO. Mestre em Planejamento Urbano e Regional / UFRGS
E-mail:jeniffercuty@yahoo.com.br
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